A Aquisição da Leitura
e da Escrita
Autora: Cláudia Regina
Danelon Gütschow
A compreensão da
aquisição de leitura e escrita tem se baseado, em grande parte, nas alterações
que ocorrem neste processo. Ao analisar os distúrbios da linguagem escrita, podemos
traçar modelos teóricos explicativos que discriminam as diversas habilidades
necessárias para que a leitura e a escrita ocorram de forma competente.
Portanto, a seguir serão descritas as principais teorias que visam à explicação
dos distúrbios em leitura e escrita, de forma a lançar luz sobre os processos
nelas envolvidos.
Uma dessas teorias
explicativas é a Hipótese do Déficit Visual (Ajuriaguerra, 1953; De
Hirsh & Jansky, 1968; Orton, 1937), segundo a qual problemas de leitura e
escrita se devem a dificuldades com o processamento de padrões visuais
(Capovilla & Capovilla, 2000). Essa hipótese perdurou por cerca de 50 anos,
da década de 1920 à década de 1970.
A partir da década de
70, evidências de distúrbios de processamento fonológico subjacentes aos
problemas de leitura e escrita começaram a enfraquecer a Hipótese do Déficit
Visual. Vários estudos foram conduzidos demonstrando que dificuldades
fonológicas (i.e., com a percepção e o processamento automático da fala) e
metafonológicas (i.e., com a segmentação e manipulação intencionais de
segmentos da fala) são capazes de predizer dificuldades ulteriores na
aprendizagem de leitura e escrita, e que procedimentos de intervenção voltados
ao desenvolvimento de habilidades metafonológicas (especialmente procedimentos
para desenvolver a consciência fonológica) são capazes de produzir ganhos
significativos em leitura e escrita (Bradley & Bryant, 1983; Byrne,
Freebody, & Gates, l992; Capovilla & Capovilla, 2000; Cunningham, 1990;
Elbro, Rasmussen, & Spelling, 1996; Lie, 1991; Lundberg, Frost, &
Petersen, 1988; Schneider, Küspert, Roth, Visé, & Marx, 1997; Torgesen
& Davis, 1996, Vandervelden & Siegel, 1995).
Com tais estudos,
a Hipótese do Déficit Fonológico tornou-se predominante. Segundo tal
hipótese, os distúrbios de processamento fonológico são a principal causa dos
problemas de leitura e escrita. A importância do processamento fonológico para
a leitura e escrita pode ser compreendida analisando-se os estágios pelos quais
a criança passa na aquisição da linguagem escrita.
Conforme descrito por
Frith (1985) e Capovilla e Capovilla (2000), a criança passa por três estágios:
o logográfico, o alfabético e o ortográfico. No estágio logográfico a
criança lê de maneira visual direta; a leitura depende do contexto e das cores
e formas do texto. Por exemplo, uma criança pode ler logograficamente o rótulo
Coca-Cola; logo, se as letras desta palavra forem trocadas, a criança não
perceberá o erro desde que a forma visual global e o contexto permaneçam iguais
aos da palavra correta. Isto demonstra que a criança não presta atenção à
composição da palavra em letras, apesar de conseguir ter acesso ao significado
de algumas palavras conhecidas. Por isso, o estágio logográfico é considerado
uma forma de pré-leitura, visto que as palavras escritas são tratadas como
desenhos, e não propriamente como um código alfabético.
No estágio
alfabético, a criança compreende que a escrita mapeia a fala e, portanto,
começa a escrever como fala. Conseqüentemente pode ocorrer erro de regulação grafofonêmicas,
como, por exemplo, escrever a palavra casa com a letra z em vez de s. Tais
erros são esperados neste estágio, visto que a criança está aplicando as regras
da escrita intermediadas pelos sons da fala. A partir deste momento a criança
pode começar a aprender as regras de posição, como por exemplo "s
intervocálico soa como /z/".
No terceiro estágio,
o ortográfico, a leitura e a escrita ocorrem por reconhecimento visual
direto das formas ortográficas de morfemas ou de palavras, pré-armazenadas no
léxico. A criança passa, portanto, a ler e escrever corretamente palavras
irregulares, como por exemplo, aquelas em que a letra x tem sons irregulares
(e.g., nas palavras exército e próximo). Quando a criança
dominou todas as estratégias desenvolvidas nos estágios logográfico, alfabético
e ortográfico, ela torna-se capaz de ler e escrever palavras novas e palavras
irregulares de alta freqüência.
Portanto, há duas
formas básicas de ler e escrever de forma competente: pela estratégia
fonológica (desenvolvida no estágio alfabético) ou pela estratégia lexical
(desenvolvida no estágio ortográfico). Assim, conforme Ellis (1995), a leitura
competente pode ocorrer de acordo com um modelo de duplo-processo: a leitura
fonológica ou por associação, e a leitura lexical ou por localização.
A leitura por
localização (rota lexical ou léxico-semântica) é utilizada para lermos palavras
familiares que estão armazenadas na memória ortográfica (i.e., no sistema de
reconhecimento visual de palavras) em decorrência de nossas experiências
repetidas de leitura. Após o reconhecimento da palavra, o acesso ao sistema
semântico permite a compreensão do seu significado. Em seguida, é possível
produzir a pronúncia (pelo sistema de produção fonológica de palavras),
finalizando assim a leitura em voz alta do item escrito.
A memorização da forma
ortográfica das palavras envolve um grande esforço por parte do sujeito (Ellis,
1995). Os modelos cognitivos sugerem a existência de um local de armazenamento
lexical da ortografia de palavras familiares, semelhante ao que existe para a
fala (léxico de produção da fala), que também é usado no momento da leitura.
Ele contém todas as palavras cuja ortografia foi armazenada na memória. Ellis
(1995) o chamou de léxico de input visual ou sistema de reconhecimento
visual de palavras. Este léxico possui conexões com o sistema
semântico (que contém o significado das palavras) e com o sistema de
produção da fala (que contém a pronúncia de palavras familiares); logo, o
reconhecimento da forma ortográfica da palavra permite o acesso tanto ao seu
significado quanto à sua pronúncia.
A leitura por
associação (rota fonológica) é utilizada para lermos palavras pouco freqüentes
ou desconhecidas. Para fazermos a leitura dessas palavras, a seqüência
grafêmica (i.e., a palavra escrita) é segmentada em unidades menores (grafemas
e morfemas) e associada aos seus respectivos sons. Em seguida, fazemos a junção
dos segmentos fonológicos e produzimos a pronúncia da palavra. O acesso
semântico é obtido depois, pelo feedback acústico da pronúncia produzida em voz
alta ou encobertamente.
Assim, a forma
fonológica de uma palavra pode ser obtida por dois caminhos: ou por meio da
decodificação ou pela ativação da forma ortográfica correspondente. Nos
leitores competentes as duas estratégias estão disponíveis, sendo utilizadas em
diferentes situações de leitura, dependendo do tipo de item a ser lido. Segundo
Ellis (1995), as dificuldades relacionadas à aquisição de leitura estão
associadas às diversas competências necessárias ao uso de ambas as rotas, tais
como:
Competência léxica:
conhecimento que o indivíduo possui de um certo número de palavras da língua e
sua aptidão para ter acesso rapidamente ao vocabulário mental assim
constituído;
Competência fonológica
(ou consciência fonológica): capacidade de segmentar uma palavra em
unidades menores, como as sílabas e os fonemas, decompondo-as em seus
componentes fonológicos;
Memória operacional:
capacidade de operar com conteúdos mantidos por curtos períodos de tempo na
memória.
Nas crianças em
processo de aquisição de leitura e escrita é preciso verificar o uso das duas
rotas de leitura, i.e., verificar se há dificuldades no uso de uma ou outra
rota. Neste caso, atividades devem ser desenvolvidas para promover o uso
efetivo de ambos os processos: o fonológico e o lexical. Porém, diversas
pesquisas em todo o mundo têm apontado a prevalência de problemas fonológicos
em relação aos lexicais (Capovilla & Capovilla, 2000; Ellis, 1995;
Grégoire, 1997; Morais, 1995).
Para a compreensão das
habilidades de decodificação e de compreensão envolvidas na leitura, é
interessante o uso da equação de Gough e Tunmer (1986), L = D x C. Nesta
equação, L representa a compreensão em leitura; D, a capacidade de decodificar
uma mensagem escrita e C, a capacidade lingüística de compreender, isto é, de
dar um sentido a uma informação léxica, a frases ou a um discurso verbal.
Segundo essa equação, a leitura só ocorre de forma competente com a integração
dessas duas habilidades essenciais, por isso o uso do sinal x, que representa a
multiplicação, e não simplesmente a justaposição ou a soma dessas habilidades,
para a qual se utilizaria o sinal +, que representa a adição. Assim, para que
as leituras ocorram ambas as habilidades de decodificação e de compreensão são
necessárias; se uma das duas estiver comprometida (isto é, se tiver o valor =
0), o resultado da operação também será nulo, ou seja, a leitura competente não
ocorrerá.
A aplicação da equação
sugere a existência de perfis diferenciados de crianças com dificuldades de
aprendizagem em leitura, que variam em função da origem de tais dificuldades.
Assim, teoricamente, deveria haver um grupo de crianças cuja dificuldade
principal reside na identificação das palavras; um outro grupo cuja dificuldade
básica está na compreensão; e, finalmente, um terceiro grupo que possui
dificuldades tanto na decodificação quanto na compreensão. Todos os três grupos
apresentariam problemas de leitura, visto que nos três casos o resultado da
equação seria nulo. Dados empíricos confirmaram essa hipótese (e.g., Aaron,
1989, 1991; Braibant, 1992; Spring & French, 1990; Stothard & Hulme,
1992; Yuill & Oakhill, 1991).
A pesquisa de Aaron
(1991) ilustra a existência dos três perfis. Foram avaliados 180 alunos da 3ª à
8ª série de uma escola de ensino regular. A partir dos resultados em testes de
compreensão oral e de decodificação de pseudopalavras isoladas, foram
identificados três grupos distintos de crianças com dificuldades de leitura:
crianças apresentando
"dificuldades específicas em leitura". Elas mostram desempenhos
fracos em decodificação (D) e em compreensão escrita (L), mas seu nível de
compreensão oral (C) é normal, ou até mesmo superior à média. São
caracterizadas como tendo dificuldades específicas de leitura visto que suas
habilidades de compreensão oral estão preservadas. Geralmente tais crianças são
diagnosticadas como disléxicas;
crianças apresentando
"dificuldades inespecíficas em leitura". Possuem dificuldades de
compreensão escrita (L) associadas às dificuldades de compreensão oral (C), mas
apresentam boas ou mesmo excelentes capacidades de decodificação (D). Logo, o
problema de tais crianças não é específico à compreensão da linguagem escrita,
mas inclui dificuldades mais amplas que afetam a compreensão da linguagem oral.
Tais crianças apresentam perfis do tipo hiperléxicos;
crianças apresentando
"dificuldades cognitivas generalizadas". Nestas, os desempenhos estão
rebaixados nas três habilidades: compreensão escrita (L), compreensão oral (C)
e decodificação (D). Portanto, as dificuldades que elas apresentam na leitura
são fruto de uma combinação das dificuldades no reconhecimento das palavras
escritas e nas habilidades lingüísticas mais gerais de compreensão.
A abordagem de Aaron,
com a proposta de analisar o distúrbio de leitura a partir da equação L = D x
C, é importante para direcionar programas educativos ou reeducativos,
diferenciando o tipo de intervenção em função do perfil específico
identificado. Esta análise permite prescindir da avaliação do quociente de
inteligência (QI), tão amplamente usada no passado para o diagnóstico dos
problemas de leitura. Segundo a proposta de Aaron, a avaliação do QI pode ser
substituída pela avaliação da compreensão oral, permitindo uma análise mais
refinada dos aspectos lingüísticos, diferenciando entre habilidades especificas
de leitura e habilidades gerais de linguagem, mais do que simplesmente
diferenciando entre habilidades gerais de linguagem e habilidades de desempenho
não-verbal, como era possibilitado pelas análises de QI e pela comparação entre
QI verbal e QI de desempenho (para uma discussão mais detalhada sobre o
assunto, consultar Braibant, 1997).
Apesar da grande
contribuição de Aaron com a proposta da análise diferenciada dos três perfis de
problemas de leitura, segundo Grégoire e Piérart (1997) os estudos realizados
para detectarem as habilidades prejudicadas nos maus leitores sugerem que a
maioria dos distúrbios situa-se no nível dos mecanismos básicos que tornam
possível o reconhecimento das palavras escritas (i.e., decodificação), e não no
nível dos componentes sintáticos ou semânticos (i.e., compreensão).
Lecocq (1991) conclui
sua revisão da literatura sobre essa questão da seguinte maneira:
"Numerosos trabalhos (...) permitiram restringir, progressivamente, o
caminho de pesquisa e mostrar que não era nem a pobreza de vocabulário, nem em
uma organização mediana da memória semântica, nem em um defeito da
sensibilidade à informação contextual, nem na fraqueza da análise sintática,
nem de maneira geral, nas dificuldades de compreensão que residia à deficiência
dos disléxicos, mas sim em uma incapacidade de atingir certas informações
foneticofonológicas" (Lecocq, 1991, p.42).
Confirmando este ponto
de vista, Content (1990) afirma que: "Excetuada uma síndrome específica e
rara, pela qual se começa a mostrar interesse somente há alguns anos, a
hiperlexia, que se caracteriza, inversamente, por excelentes competências em
leitura oral acompanhadas de uma compreensão às vezes extremamente pobre, a
característica geral dos distúrbios de leitura é a presença de uma dificuldade
no nível da identificação de palavras isoladas" (Content, 1990, p. 27).
Conforme os resultados de pesquisas revistos por Content, os maus leitores
apresentam, sistematicamente, desempenhos mais fracos nas tarefas de decodificação
(de palavras ou de pseudopalavras) que necessitam da utilização de regras de
correspondência grafo-fonema, bem como nos testes que avaliam suas capacidades
fonológicas (Contet, 1990; Lecocq, 1991, 1992; Gombert, 1992; Rieben &
Perfetti, 1989; Siegel & Ryan, 1989; Sprenger-Charolles, 1989). Em tais
tarefas os bons leitores tendem a ser mais rápidos e mais precisos que os maus
leitores, apresentando habilidades de decodificação já automatizadas. A
dificuldade específica de processamento fonológico nos maus leitores é
corroborada pelo fato de que, embora estes maus leitores sejam consistentemente
piores nas tarefas de reconhecimento de palavras, eles são relativamente
competentes quando se trata de utilizar os conhecimentos gerais e lingüísticos
para facilitar a decodificação.
Confirmando tais
achados, nos estudos sobre as habilidades cognitivas relacionadas à aquisição
de leitura e escrita, a consciência fonológica, habilidade essencial para o
desenvolvimento da decodificação, tem se mostrado como de extrema importância
(Capovilla & Capovilla, 2000; Ellis, 1995; Grégoire, 1997; Morais, 1995).
Bradley e Bryant (1983,
1985) fizeram um trabalho de avaliação e intervenção em um grupo de 403
crianças de quatro e cinco anos de idade na área de Oxford, Inglaterra. Nenhuma
das crianças possuía habilidades de leitura ou escrita no início do estudo. A
consciência fonológica foi testada, apresentando às crianças três ou quatro
palavras de três letras, sendo que todas, exceto uma, tinham os mesmo sons
iniciais, centrais ou finais. A tarefa da criança era identificar qual palavra
era diferente. Por exemplo, em um item o experimentador falava as palavras
"lot", "cot", "hat" e "pot", e então a
criança devia identificar "hat" como a palavra diferente. O
desempenho das crianças nesta tarefa de consciência fonológica foi um bom
previsor de sua capacidade de leitura e escrita três anos mais tarde.
Outros estudos como de
Cunningham (1990) e Clay (1995) também foram unânimes em demonstrar a
importância da consciência fonológica para a aquisição da leitura e da escrita.
Segundo Ellis (1995), duas sessões extras de exercícios de consciência
fonológica, de trinta minutos de duração cada, semanalmente, dadas a fracos
leitores de 6 e 7 anos, por 20 semanas, produziu melhoras significativas e
duradouras na leitura e na escrita. Tais ganhos ocorreram não somente em
relação à capacidade de ler em voz alta, mas também se estenderam à compreensão
do que era lido.
Sumariando, tais
achados de pesquisa evidenciam a prevalência dos problemas de leitura devidos a
dificuldades na decodificação, em oposição àqueles devidos a dificuldades de
compreensão. Estes dados mostram a importância da rota fonológica ou por
associação na leitura competente, e apontam para a necessidade de desenvolver
instrumentos de avaliação e procedimentos de intervenção remediativa e
preventiva relacionada às habilidades fonológicas.
------------------------------------------------------------------------------
Cláudia Regina Danelon
Gütschow - Mestre em Psicopedagogia pela Universidade de Santo Amaro Pedagoga
com especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional pelo Instituto
Sedes Sapientiae
Parte superior do
formulário
Parte inferior do
formulário
Nenhum comentário:
Postar um comentário