Azoilda
Loretto da Trindade1
TIN DÔ LÊ LÊ: BRINQUEDOS, BRINCADEIRAS E A
CRIANÇA AFRO-BRASILEIRA (UMA REFLEXÃO)
Às crianças que foram
invisibilizadas e silenciadas ao longo da História
Abra a roda
tin dô lê lê
Abra a roda
tin dô lá lá
Abra a roda
tin dô lê lê
tin dô lê lê
tin dô lá lá2 ...
Vamos convidá-lo(a) a
lembrar dos sorrisos, da sua infância, das brincadeiras... Deixe essas
lembranças chegarem. Permita-se lembrar dos sabores, odores/cheiros, cores,
texturas... Dos gritinhos, das corridas, dos machucados... Das marquinhas que
você carrega no corpo como lembranças das peraltices... Não continue este
texto sem lembrar. Lembre, relembre, lembre...
Lembrar para se
religar à criança que está dentro de nós, guardada no coração, a criança que
ainda somos. Avivar nossa memória, puxar seu fio para que, quem sabe,
possamos perceber, no nosso corpo, o valor, a importância dos brinquedos e
das brincadeiras para nós e, conseqüentemente, para nossas crianças, as
crianças sob nossa responsabilidade de educadoras e educadores. Afinal,
Há um menino, há um moleque morando sempre no meu
coração Toda a vez que o adulto "balança" ele vem pra me dar a mão.
Há um passado no meu presente. Um sol bem quente lá
no meu quintal,
Toda vez que o adulto fraqueja o menino me dá a
mão...
E me fala de coisas bonitas que eu acredito que não
deixarão de existir:
Amizade, palavra, respeito, coragem, bondade,
alegria e amor...
Pois não posso, não quero, não devo, viver como toda
essa gente insiste em viver.
Não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser
coisa normal3.
Devagarzinho /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá lá. No clima dos brinquedos e
brincadeiras, percebamos a riqueza da roda aberta. Olham-se as
diferenças e semelhanças, as igualdades, a diferença dos seus participantes,
sem hierarquias. Todos ali se vendo, de mãos dadas, num círculo em cujo
centro existem as possibilidades.
Vamos, no entanto,
devagarzinho, nos lembrar das crianças que ficaram de fora desta roda ao
longo da nossa História, de crianças cuja memória histórica de brinquedos e
brincadeiras está ligada ao engenho de cana4 , à senzala, aos
guetos, aos lugares invisibilizados, escondidos, ao estado, qualidade,
condição de escravas. Para evitar equívocos, estamos nos referindo às
crianças afro-brasileiras, razão desta série, deste programa.
No centro da roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô
lá lá. Colocando estas crianças no
centro da roda, vamos, para começo de conversa, tirá-las do lugar de carência
e olhá-las como força, como potência. Como crianças cujo axé, cuja energia
vital foram e são tão fortes que nos fazem pensar: como elas resistiram e
resistem à tanta perversidade social?
Desnaturalizar
a concepção de criança escrava, como algo quase biológico, fechado,
etiquetado, e olhá-las como crianças que foram, sim, escravizadas ontem e
hoje, parece-me fundamental. Fundamental para desnaturalizar o lugar de
subalternidade, de marginalidade, de exclusão ao qual tentam colar, aprisionar
nossas crianças. Fundamental para reafirmar o compromisso e o débito
social de garantir-lhes sua infância, seu direito de brincar, de
sorrir, de ter orgulho da sua memória e do seu povo.
Fechando a roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá
lá. Agora bem próximos,
vamos pensar que temos uma memória social cindida, partida. Grande parte da
nossa população brasileira não se reconhece afro-brasileira. Neste sentido, o
lado afro da nossa história, o escondido, o submerso da nossa memória,
necessita ser descortinado, exposto. Essa memória afro-brasileira precisa vir
à tona e creio ser no exercício de lembrar que o emergir, o sair da amnésia
social, na qual nos encontramos, podem acontecer coletivamente. E nada melhor
para isso do que lembrar das histórias inscritas no nosso corpo, em especial
no nosso corpo de educadoras e educadores.
Histórias que entram em cena mediadas por suas
lembranças. Tais lembranças necessitam ser faladas, escritas, lidas,
assumidas, afirmadas, escutadas, para poderem assim ganhar status de memória,
serem lapidadas. Elas nos habitam individualmente, mas seu nascimento, há
muito, aconteceu no coletivo. Quando socializadas, podem ser refletidas e
criticadas. (...)
Ver, porque ganhou distância, num processo
reflexivo, como construtor e não reprodutor do próprio processo de
aprendizagem, possibilita a compreensão entre construir conhecimento e
reproduzir conhecimento, repetir história e construir história5.
Destaco isto pois
creio que se nosso corpo não estiver visceralmente envolvido com o processo
de construção de uma educação efetivamente voltada para todos, sucumbiremos
diante do árduo processo de imprimir as africanidades brasileiras no nosso
currículo escolar, que se pretende multicultural. Africanidades brasileiras
"refere-se às raízes da cultura brasileira que têm origem africana.
Dizendo de outra forma, queremos nos reportar ao modo de ser, de viver,
de organizar suas lutas, próprio dos negros brasileiros e, de outro lado, às
marcas da cultura africana que, independente da origem étnica de cada
brasileiro, fazem parte do dia-a- dia"6.
Ao tirar da prisão do
esquecimento a memória individual e coletiva afrodescendente que habita nossa
população, estaremos dando um passo fundante para a concretização dos nossos
ideais democráticos em relação à educação.
Dando um exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá
lá. Conceição nasceu no dia 8 de
dezembro, no final dos anos 70 do século XX, dia consagrado a Nossa Senhora
da Conceição e, em algumas religiões afrodescendente ou afro-brasileiras, a
Oxum, orixá feminino, que, segundo Verger (1981, p. 174) controla a
fecundidade e reina sobre todos os rios, exercendo seu poder sobre as águas
doces, fundamental para a vida na Terra .
Sua família, adepta
da umbanda, uma religião afro-brasileira, desejou homenagear Oxum, colocando
este nome na menina. Segundo ela, houve o impedimento no cartório e a família
imediatamente deu-lhe o nome de Conceição
para poder homenagear Oxum, sem
repressão. (Esta história é emblemática em relação ao surgimento do nosso
sincretismo religioso.)
Por muito tempo, mais
de vinte anos, ela relata que tinha vergonha de contar esta história e dizia
que seu nome era em homenagem a Nossa Senhora da Conceição.
Ao compartilhar,
coletivizar sua lembrança, sua história identitária, Conceição libertou
sua memória e sua própria identidade e certamente sua história lembrada e
contada foi disparadora de outras memórias e de outras identidades.
Relato este exemplo
para fundamentar o desafio que se coloca à nossa frente ao nos predispormos a
fazer valer a Lei nº 10.639/2003 que regulamenta a inclusão da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira" no currículo escolar. Ora,
nenhuma lei se torna exeqüível sem envolvimento social, sem pertencimento
coletivo. Esta lei, especificamente, só se concretizará, no cotidiano
escolar, se houver a real parceria com os professores e professoras. Se
houver a vivência cotidiana da crítica do cotidiano escolar, permeado por
conflitos, encontros e desencontros, racismos, preconceitos e discriminações,
muitas vezes alienadamente confundidos com brincadeiras ingênuas, bobagens ou
insignificâncias.
Dando outro exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô
lá lá. Participava de um curso de
formação de educadores de Educação Infantil, quando a professora, colocou um
vídeo, onde tinha a brincadeira infantil Barra
manteiga na fuça da nêga. Vale destacar que o curso tinha uma perspectiva
crítica e progressista. Fiquei constrangida, mas fui obrigada, pela minha
consciência, a questionar o material. O argumento-resposta foi perfeito:
"essa brincadeira faz parte do nosso repertório cultural e afetivo,
todos já brincamos dessa brincadeira", foi dito. No entanto,
contra-argumentei: "É, mas não foi dito que a nêga da brincadeira é uma mulher negra, logo gente, logo tem
nariz e não fuça". Não foi dito que não se coloca barra de manteiga no
nariz de ninguém, não foi dito que se tratava de uma brincadeira que
retratava um período de nossa história (o escravismo). Não foi dito que o
silêncio, a não-crítica, a não- reflexão num curso de formação de professores
acabam por naturalizar a situação e reforçar a violência simbólica que se
pratica contra todos os afro-brasileiros e afrodescendentes. E, assim, não se
questiona que com tantos exemplos possíveis de brincadeiras, aquele foi escolhido
sem nenhuma crítica, num vídeo de um curso que se pretendia crítico,
multiplicador, formador de práticas e opiniões pedagógicas.
Esta situação
significativa demonstra a total ou quase total insensibilidade para com
metade da população brasileira: os afro-brasileiros. Mas por quê?
Mão na testa/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá lá. E no repertório popular e afetivo da nossa gente,
temos muitos exemplos de brincadeiras significativas que nos levam a pensar: Chicotinho queimado, as Sinhazinhas das festas juninas,
as músicas como Samba -lelê tá doente,/
Tá com a cabeça quebrada/
Samba-lelê precisava /É de umas boas palmadas. Ou a tradicional Boi, boi, boi,/ boi da cara preta,/
pega essa menina /que tem medo de careta. Das histórias como a do Negrinho do Pastoreio e da Moura Torta. Creio que as brincadeiras
e brinquedos estão em sintonia com a sociedade na qual estão inseridos, então
não é surpreendente o que ocorre e ocorreu numa sociedade com uma história de
autoritarismo como a nossa.
Vamos girando/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá lá. Gostaria de concluir este texto pensando em dois
aspectos fundamentais para nós: a importância do brincar e a importância do
corpo que brinca.
O brincar,
no dizer de Verden-Züller (2004, p. 230), "é atentar para o presente".
O não estar preocupado com o futuro, com as conseqüências da ação, mas em
vivê-la enquanto ela está sendo vivida por nós. É encantar-se com o aqui e
agora, é entregar-se ao presente.
Atentemos para o fato
de que nós, educadoras e educadores, imersos em planejamentos, currículos,
controles, muitas e muitas vezes, além de não brincarmos - capacidade que em
muitos de nós está aprisionada no nosso corpo -, impedimos que o outro
brinque, em nome, num sem número de vezes, de uma desnecessária disciplina,
lei, organização, em nome da nossa "autoridade", contribuindo
assim, para a degeneração da vida humana, que tem no brincar a afirmação da
vida.
Vamos brincar um
pouquinho, vamos nos encontrar com os sacis, com as cucas, com o Negrinho do
Pastoreio, com os bois das caras-pretas de vez em quando. É, vamos
redescobrir o prazer de brincar que, certamente, tomou nosso corpo em
algum momento da nossa vida.
O corpo traduz a nossa presença
concreta no mundo. A nossa existência e potencialidade se circunscrevem
no nosso corpo. Com ele amamos, sonhamos, produzimos, sentimos, percebemos,
nos constituímos como sujeitos. O que é importante para nós, educadores e
educadoras, é o respeito por este corpo, o nosso e o do outro, dos nossos
alunos, das nossas alunas, nossos colegas, nossas colegas, nossos
companheiros e companheiras de existência. Corpos que carregam histórias e
memórias, marcas que anunciam e denunciam, que falam, mesmo sem palavras.
Creio que esta dimensão de acolhida respeitosa, amorosa do corpo do outro,
sobretudo quando este outro tem uma história-memória social de violência,
mutilação, insensibilidades com relação ao seu corpo e aos corpos dos seus
iguais, é chave para a permanência e o sucesso das nossas crianças, em
especial as crianças negras, na escola. Permanência e sucesso não de vítimas
ou de carentes, mas de cidadãos e cidadãs de direito, vitoriosos
sobreviventes do racismo, exclusões e injustiças sociais.
Que tal, junto com
elas e eles, construirmos um belo repertório de brinquedos e brincadeiras? E
assim, quem sabe, no coletivo, fazermos emergir, no brincar, a nossa memória
afro-brasileira. Confie, o nosso corpo e o corpo de nossas crianças, eles
sabem brincar, afinal o brincar é um saber acontecente. É só começar.
Inventando
tin dô lê lê
Inventando
tin dô lá lá
Inventando
tin dô lê lê
tin dô lê lê
tin dô lá lá...
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. VÍDEOS/FILMES:
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Jorge Aragão ao vivo
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CD ABRA A RODA tin dô
lê lê, de Lydia Hortélio
CD Tambolelê
DIA DE GRAÇA (Candeia
- sambista negro)
Wonderful world - Louis Armstrong
SITES:
www.mulheresnegras.org
www.afirma.com.br
www.geledes.org.br
www.anped.org.br (GT
de Relações Raciais)
www.terrabrasileira.net/folclore/manifesto/jogos.html
www.projetohistoriadosamba.hpg.ig.com.br
NOTAS:
1 Pesquisadora da UFRJ e ativista do Movimento Anti -
Racista.
2 Abra a roda tin dô lê lê é uma cantiga de roda do nosso
repertório popular.
3 Bola
de gude, Bola de Meia, de Milton Nascimento e Fernando Brant.
4 KISCHIMOTO,T. M. Jogos tradicionais Infantis: O jogo, a criança e a educação.
Petrópolis,RJ: Vozes, 1993 (p 26 a 59).
5 FREIRE, Madalena. "Memória: Eterna
idade." Diálogos. São Paulo. Espaço Pedagógico, ano II, n° 5, julho
1999.
6 SILVA. Petronilha Beatriz Gonçalves e. Africanidades Brasileiras: esclarecendo
significados e definindo procedimentos pedagógicos. Revista do Professor.
Porto Alegre, 19 (73):26-30, jan./mar. 2003.
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