Temas Transversais
Gostaríamos que este
pequeno texto sobre os temas transversais motivasse a reflexão e o debate de
uma questão que se apresenta atual e ao mesmo tempo tão pouco explorada na
escola. Certamente sua inclusão no currículo representa um desafio à cultura
escolar.
Quando se fala sobre
os temas transversais a primeira coisa que muitos professores pensam é que,
apesar de serem "interessantes", não há espaço para a discussão deles
no interior da escola, tendo em vista o extenso programa curricular que
precisam cumprir. Se isso realmente acontece, então uma primeira pergunta se
impõe: Por que a inclusão dos temas transversais no currículo?
Outros professores
têm uma posição diferente, alegam que tais temas já são trabalhados nas
diversas disciplinas e não vêm novidade nenhuma em sua inclusão formal no
currículo. Se isso é verdade cabe aqui uma outra pergunta: Como esses temas têm
sido incorporados no currículo contribuindo para a formação da cidadania?
Alguns professores
acham que os conteúdos relativos a valores e atitudes, como os que trazem os
temas transversais, devem ser discutidos pela família dos alunos, ficando seu
papel limitado a ensinar os conteúdos específicos de sua disciplina. Aqui cabe
uma terceira pergunta que questiona o próprio papel da escola: Se não é função
social da escola trabalhar com valores e atitudes, como ela pretende formar
cidadãos críticos e ativos na sociedade?
Existem, ainda,
professores que incorporam esses temas na sua prática pedagógica tratando-os
como se fossem mais uma disciplina curricular, esquecendo-se do seu caráter de
transversalidade. Portanto, cabem aqui mais duas questões: Que mudanças a
inclusão desses temas, no currículo, provocarão na prática pedagógica do
professor ? O que eles representam para o processo de ensino-aprendizagem dos
alunos, e por que não dos próprios professores?
A explanação que se
segue não pretende de forma alguma esgotar a discussão sobre o assunto; como já
foi dito acima espera-se, apenas, iniciar a reflexão a partir de algumas questões
pertinentes para a compreensão da importância dos temas transversais para a
formação dos nossos educandos.
Para entendermos a
inclusão dos temas transversais seria interessante pensarmos como e por quê são
estas e não outras as disciplinas que compõem o currículo atual. As disciplinas
como: matemática, português, história, geografia, ciências, educação artística,
etc. têm suas origens nos interesses intelectuais dos pensadores da Grécia
clássica. As temáticas escolhidas por aqueles pensadores tinham em comum a não
aproximação com o trabalho manual, com a vida cotidiana, e com a aplicação
prática. As questões problemáticas da vida cotidiana eram destinadas às
mulheres e aos escravos, ficando aos filósofos e demais cidadãos gregos as
questões de plano intelectual, que vieram a dar origem à ciência ocidental. As
questões dos filósofos gregos refletiam as preocupações de uma sociedade
elitista e hierarquizada. Tais questões ainda se encontram presentes na
estrutura curricular do ensino atual. Cabe aqui refletirmos se as temáticas de
interesse dos pensadores helênicos dão conta da diversidade e complexidade de
questões que nos impõe a vida cotidiana contemporânea. Se considerarmos que as
idéias predominantes ao longo da história constituem o ensino de cada época e
considerando que essas idéias avançam, então é natural que os avanços se
reflitam no ensino. Portanto, não se trata de menosprezar a herança intelectual
dos gregos, mas incorporar novas temáticas que dêm conta dos novos desafios
impostos pelo nosso tempo. Dentro deste enfoque é que os temas transversais
foram incluídos no currículo, abordando conteúdos mais vinculados ao cotidiano
e propondo discussões referentes aos valores pertinentes à nossa época.
A inclusão dos temas
transversais no currículo escolar vem questionar o próprio conceito tradicional
de ciência, entendida como um conjunto acumulativo de verdades da natureza,
pois esta ciência ao contrário do que imaginavam seus pensadores, também não
consegue abarcar o total da realidade.
Podemos invocar aqui
a ciência com consciência na qual, segundo Edgar Morin, o problema do controle
ético e político da atividade científica é levantado frente aos poderes de
manipulação e destruição oriundos das tecnociências atuais. Além do sentido
ético e político a palavra consciência nos coloca um sentido intelectual que
nos remete à qualidade chave da consciência, que é a sua aptidão
auto-reflexiva. A ciência tem necessidade de pensar a complexidade do real,
pensando na sua própria complexidade enquanto ciência e na complexidade dos
problemas que ela mesma coloca à humanidade. Assim, a ciência deve fazer as
pazes com a reflexão filosófica da mesma forma que a filosofia deve fazer as
pazes com as ciências. Só deste modo é possível pensarmos a ciência com consciência
da sua própria complexidade, de seus alcances e limites.
A questão agora é
entendermos como os temas transversais devem ser incorporados ao currículo.
Como os conteúdos de todos os temas transversais estão presentes nos diversos
campos de conhecimento, muitas vezes o professor só incorpora na sua prática
pedagógica a parte relacionada aos conteúdos específicos de sua disciplina,
esquecendo-se de incorporar a discussão dos valores, atitudes e procedimentos
que o tema suscita. Não basta que o aluno saiba o funcionamento de uma usina
nuclear, ele precisa saber posicionar-se em relação a esta questão, que envolve
a preservação ambiental, mas também interesses políticos, sociais e econômicos.
Para que o aluno compreenda essa questão, o professor deverá problematizá-la
através de discussões dos valores aí implícitos.
É importante deixar
claro que os valores vivenciados na escola se derivam e estão intimamente
relacionados com os ideais que cada grupo social elabora historicamente sobre
si mesmo e sobre seus integrantes, visando garantir, através de sua reprodução,
sua hegemonia, isto é, sua preponderância sobre os demais. Portanto, os valores
que constituem a instituição escolar não são neutros, eles representam a
sociedade contraditória na qual estão imersos. Desse modo, os fins, princípios
e métodos definidos para a educação são expressão das disputas de interesses
políticos dos diversos setores da sociedade.
A escola não é a
única instituição que desenvolve o processo de socialização, entendido aqui
como processo de aquisição das conquistas sociais por parte das novas gerações,
mas especializa-se cada vez mais no exercício exclusivo de tal função. Através
de seus conteúdos e formas de organização, a escola contribui para a
interiorização das idéias, valores, conhecimentos, concepções e modos de
conduta que a sociedade adulta requer.
O processo de
socialização, porém, não é tão simples, linear ou mecânico. Vemos na escola a
mesma tensão dialética que aparece em qualquer instituição social: de um lado
temos tendências conservadoras reproduzindo o status quo para garantir sua
própria sobrevivência, de outro, correntes renovadoras impulsionando mudanças
como condição também de sobrevivência. A função educativa da escola portanto,
segundo Sacristán e Gómes, seria utilizar o conhecimento como ferramenta de
análise para compreender o sentido das influências de socialização que o
indivíduo recebe na escola e na sociedade e os mecanismos que se utilizam para
a sua interiorização pelas novas gerações. Desse modo, o conhecimento como
ferramenta de análise estaria oferecendo à escola espaços de relativa autonomia
para a construção da cidadania.
Possibilitar na sala
de aula uma discussão sobre valores não é uma tarefa fácil, pois exige que o
professor se coloque como parte integrante do grupo e também explicite que
valores a escola pretende legitimar. Determinados valores devem fazer parte do
projeto pedagógico da escola, sendo trabalhados por todo o corpo docente com os
alunos. Mas como serão selecionados esses valores? Isso implica uma ampla
discussão de toda comunidade escolar na qual certamente ficarão evidentes as
inúmeras divergências existentes em relação aos valores, atitudes e
procedimentos que deverão ser priorizados. Apesar de difícil, esta é uma tarefa
que a escola não pode se negar a fazer, se pretende formar cidadãos críticos e
participativos.
Os temas transversais
são considerados "transversais" porque se inserem no currículo de
forma a estar presentes em todos os campos do conhecimento. Assim, os temas,
não sendo propriedade de nenhum campo específico, devem ser tratados por todas
as disciplinas de forma integrada. Isto exige que o professor volte sua atenção
para a questão da interdisciplinaridade. Trabalhar interdisciplinarmente, por
sua vez, exige que o professor compartilhe com os colegas de profissão sua
forma de trabalhar. Nem todos os professores se sentem à vontade para
explicitar o seu trabalho pedagógico: talvez o receio da crítica ao seu
trabalho os impeça de trabalhar de forma mais integrada. Talvez, ainda, os
problemas sejam a concepção tradicional de ciência e a conseqüente ausência da
cultura da interdisciplinaridade na escola, que levam o professor a uma prática
pedagógica tradicional que compartimenta os saberes em diversas disciplinas.
O conhecimento e a
ação na transversalidade trazem mudanças na prática pedagógica do professor e
no processo ensino-aprendizagem. Os temas transversais propõem que os
professores assumam a condição de intelectuais transformadores, educando os
alunos para a criticidade e para a ação transformadora. Essa ação
transformadora significa educar os alunos para lutarem contra a opressão e a
favor da democracia no interior da própria escola e em esferas sociais mais
amplas. Mas, para agirem como intelectuais transformadores, os professores
precisam criar condições estruturais necessárias para escreverem, pesquisarem e
trabalharem conjuntamente na elaboração de um currículo mais democrático. A
elaboração deste currículo passa pelo acesso, organização e síntese de
informações, pela valorização de algumas práticas em sala de aula, como a
integração, colaboração, participação, criatividade e criticidade. Os
professores, elegendo métodos e atividades que estimulem a formulação de
questões, a reflexão, a discussão de opiniões contrárias, a resolução de
problemas e conflitos, estarão estimulando o aluno " aprender a
aprender". Os alunos serão, portanto, também responsáveis pelo seu
aprendizado buscando e organizando informações, tirando conclusões e avaliando
seu trabalho. Neste tipo de trabalho fica claro que o conhecimento não está
pronto e acabado, mas que é social e historicamente construído. Portanto, a
inclusão dos temas transversais no currículo possibilita que o professor tenha
o controle de todo o processo do seu trabalho, desde a concepção até a
execução.
Uma forma de
organizar os conteúdos, que favorece a compreensão dos vários aspectos que
compõem a realidade, articulando as contribuições de diversos campos de
conhecimento, é através do desenvolvimento de projetos.
As atividades propostas
neste caderno organizam os conteúdos em torno de Projetos que se relacionam
entre si através da temática ambiental. Esta temática envolve questões
relativas tanto à proteção e melhoria do meio ambiente, quanto à melhoria da
qualidade de vida das comunidades. Nesta perspectiva, não só os aspectos
físicos e biológicos são estudados mas, também, as diversas interações do homem
com a natureza através das relações sociais, do trabalho, da ciência, da arte,
da tecnologia, etc. O estudo de tais questões exige o conhecimento dos
conteúdos das diversas disciplinas do currículo escolar, bem como, a discussão
dos valores existentes na interação homem/natureza. A temática ambiental está,
desta forma, impregnada no conjunto de disciplinas curriculares, ocupando assim
uma posição de transversalidade.
Os Projetos
apresentados neste caderno podem ser desenvolvidos de acordo com a organização
didática escolhida pelo professor. Assim, a integração e a profundidade das
atividades escolares podem se dar em diferentes níveis, de acordo com o domínio
do tema ou da prioridade com que se apresenta para a escola. Mas, independente
do nível com que os temas são trabalhados o importante é que eles introduzem na
escola problemáticas ligadas ao cotidiano, possibilitando o desenvolvimento da
criticidade, essencial para a formação da cidadania. Esta talvez seja a grande
inovação dos temas transversais, pois eles vislumbram a possibilidade de
elaboração de um currículo global da escola, integrando os conteúdos dos
diferentes campos de conhecimento aos valores e atitudes que se quer
desenvolver para uma sociedade mais justa e democrática.
Alguns princípios se
destacam nesta nova dimensão pedagógica que se esboça com a inclusão dos temas
transversais no currículo:
·
A escola fundamenta sua ação na realidade cotidiana, relacionando o
conhecimento dos conteúdos disciplinares com o conhecimento que emana da
realidade e da experiência dos alunos.
·
A escola adota atitude crítica e construtiva em favor do desenvolvimento
dos valores éticos, visando um projeto de vida mais digno.
·
A escola torna-se síntese do desenvolvimento de capacidades
intelectuais, afetivas, sociais, motoras e éticas dos alunos.
Para que esses
princípios se concretizem são necessárias algumas intervenções:
·
acordo por parte da comunidade escolar dos valores básicos nos quais se
vai educar;
·
clima de coerência no âmbito escolar em relação aos valores básicos em
que se vai educar;
·
trabalhar igualmente, em todas as áreas, os conteúdos conceituais,
procedimentais e atitudinais.
Gostaríamos de
ressaltar que o trabalho com os temas transversais não se concretiza na escola
da noite para o dia. Ele não pode ser imposto por decretos ou normas: é um
processo que deve ser construído e incorporado por toda equipe escolar.
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