domingo, 11 de dezembro de 2011



SUMÁRIO



JOGOS E BRINCADEIRAS: DESAFIOS E DESCOBERTAS (2ª EDIÇÃO)




PROPOSTA PEDAGÓGICA................................................................................................ 03

Cristina Laclette Porto



PGM 1 - PENSANDO A INFÂNCIA E O DIREITO DE BRINCAR............................................. 12

Patrícia Corsino



PGM 2 - O BRINQUEDO COMO OBJETO DE CULTURA....................................................... 25

Cristina Laclette Porto



PGM 3 - BRINCADEIRA OU ATIVIDADE LÚDICA?................................................................ 33

Cristina Laclette Porto



PGM 4 - JOGOS E BRINCADEIRAS NO CONTEXTO ESCOLAR........................................... 48

Tânia Vasconcellos



PGM 5 - A FORMAÇÃO LÚDICA DO PROFESSOR............................................................... 57

Cyrce Andrade




















JOGOS E BRINCADEIRAS: DESAFIOS E DESCOBERTAS    2 .


PROPOSTA PEDAGÓGICA


Cristina Laclette Porto1


Apresentação



A série Jogos e brincadeiras: desafios e descobertas (2ª edição), que será apresentada pela TV Escola, no programa Salto para o Futuro, de 12 a 16 de maio, é composta por cinco programas que pretendem oferecer caminhos para o aprofundamento das reflexões sobre a criança, os brinquedos, as brincadeiras e os jogos, abordando projetos na área de educação que valorizam esses temas e que encontraram formas de incorporá-los. As brinquedotecas são um exemplo.


Vivi a experiência de coordenar, durante 16 anos (1990-2006), uma das primeiras brinquedotecas criadas no Rio de Janeiro. A Brinquedoteca Hapi (palavra do idioma dos índios ianomâmi que significa entrada, passagem) funcionou durante 14 anos nos jardins do Museu da República.


As crianças podiam brincar e levar brinquedos emprestados. O acervo era constituído de brinquedos doados ou comprados. Sacos repletos de jogos, brinquedos e objetos inusitados nos chegavam como doações que revelavam muitas surpresas. As apropriações que crianças e adultos faziam dos brinquedos e das brincadeiras eram plenas de significados, que exigiam um conhecimento profundo para decifrá-los. A equipe atuava brincando quando solicitada; apresentando brincadeiras tradicionais, brinquedos e jogos diversos; respeitando o desenrolar das brincadeiras escolhidas pelas crianças; contando histórias; desenhando, pintando, e construindo junto. No começo de nossa história, espaços como esse, dedicados aos brinquedos e ao ato de brincar, eram raros.

 Foi ao longo dos últimos anos que o debate sobre a importância e sobre o direito de brincar se intensificaram e provocaram o surgimento de brinquedotecas em creches, escolas e hospitais.

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PROPOSTA PEDAGÓGICA


Cristina Laclette Porto1


Apresentação



A série Jogos e brincadeiras: desafios e descobertas (2ª edição), que será apresentada pela TV Escola, no programa Salto para o Futuro, de 12 a 16 de maio, é composta por cinco programas que pretendem oferecer caminhos para o aprofundamento das reflexões sobre a criança, os brinquedos, as brincadeiras e os jogos, abordando projetos na área de educação que valorizam esses temas e que encontraram formas de incorporá-los. As brinquedotecas são um exemplo.


Vivi a experiência de coordenar, durante 16 anos (1990-2006), uma das primeiras brinquedotecas criadas no Rio de Janeiro. A Brinquedoteca Hapi (palavra do idioma dos índios ianomâmi que significa entrada, passagem) funcionou durante 14 anos nos jardins do Museu da República.


As crianças podiam brincar e levar brinquedos emprestados. O acervo era constituído de brinquedos doados ou comprados. Sacos repletos de jogos, brinquedos e objetos inusitados nos chegavam como doações que revelavam muitas surpresas. As apropriações que crianças e adultos faziam dos brinquedos e das brincadeiras eram plenas de significados, que exigiam um conhecimento profundo para decifrá-los. A equipe atuava brincando quando solicitada; apresentando brincadeiras tradicionais, brinquedos e jogos diversos; respeitando o desenrolar das brincadeiras escolhidas pelas crianças; contando histórias; desenhando, pintando, e construindo junto. No começo de nossa história, espaços como esse, dedicados aos brinquedos e ao ato de brincar, eram raros.


Foi ao longo dos últimos anos que o debate sobre a importância e sobre o direito de brincar se intensificaram e provocaram o surgimento de brinquedotecas em creches, escolas e hospitais.






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No entanto, será que a existência de brinquedos dentro dessas instituições garante um universo lúdico rico, diversificado e interessante?


Podemos perceber que nem sempre as pessoas que atuam por meio de brinquedos e jogos estão seguras quanto ao papel que devem desempenhar. Tal fato nos leva a elaborar algumas perguntas: há necessidade de uma formação específica? O que precisamos saber para que os espaços (seja a sala de aula, seja a brinquedoteca) não se organizem apenas em função do consumo ou do controle das crianças? Como a mediação dos adultos pode favorecer o exercício da autonomia e a negociação?


Desde o nascimento, as crianças são mergulhadas num contexto social. Os adultos que convivem com elas, quando se transformam em parceiros de seus jogos e brincadeiras, muitas vezes não se dão conta da importância de cada gesto, de cada palavra, de cada movimento.

A brincadeira é uma forma privilegiada de aprendizagem. Na medida em que vão crescendo, as crianças trazem para suas brincadeiras o que vêem, escutam, observam e experimentam. Estas ficam ainda mais interessantes quando os diversos conhecimentos a que tiveram acesso podem ser combinados. Nessas combinações, muitas vezes inusitadas aos olhos dos adultos, as crianças revelam suas visões de mundo, suas descobertas.


Práticas encontradas nas instituições de Educação Infantil



Alguns adultos cantam, falam de sua própria infância, observam as crianças brincando, lêem, contam histórias e ensinam brincadeiras. Outros pensam que as crianças não entendem nada e que só é preciso cuidar para que não fiquem doentes, não passem fome, frio ou sede. Quando estão brincando, preocupam-se apenas em evitar que se machuquem ou briguem entre si.

Em algumas instituições, o brincar é, muitas vezes, desvalorizado em relação a outras atividades, consideradas mais produtivas. A brincadeira acaba ocupando o tempo da espera, do intervalo. No entanto, valorizar a brincadeira não é apenas permiti-la, é suscitá-la.





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Ao observarmos atentamente o modo como as diferentes crianças brincam, é possível perceber que os usos que fazem dos brinquedos e a forma de organizá-los estão relacionados com seus contextos de vida e expressam visões de mundo particulares.


Debortoli (2005) aponta que o discurso do brincar tem feito surgir, especialmente na Educação Infantil, um ideário pedagógico que faz da brincadeira um de seus conteúdos, de seus meios e, muitas vezes, uma finalidade.


Na prática, encontramos materiais diversos, entre eles o brinquedo, colocados à disposição das crianças de maneira irrefletida, como se apenas sua presença garantisse o aparecimento de crianças mais observadoras e imaginativas.


Em sua pesquisa de doutorado, Debortoli observou e analisou as mediações de professoras e percebeu a dificuldade delas em reconhecer seu lugar social e a importância de mediações sistemáticas, de projetos e princípios claros e intencionais. As ações observadas reforçavam a idéia de aprendizagem natural e espontânea.


Surgiram no seu campo de pesquisa algumas categorias usadas pelas professoras para defender a inclusão do brincar na Educação Infantil: 1) brincadeira pedagógica: uso de brinquedos e jogos para favorecer aprendizagens escolares; 2) recreação: dinâmicas criadas para ensinar brincadeiras, sem que novas relações e significados possam emergir desses momentos; 3) brincadeira livre: momentos em que as crianças brincam sem interferência e também sem mediação alguma das professoras. 4) brincadeiras dirigidas: maneiras “certas” de brincar.


Pereira (2005), por sua vez, chama a atenção de que as brincadeiras são uma linguagem que perpassa toda a nossa experiência de vida. São gestos, sons, expressões, inflexões, declarações e imagens que se inter-relacionam. Podemos estabelecer nossa forma de trabalho nessa linguagem, mas precisamos saber o que estamos fazendo. O educador precisa constantemente procurar saber o que o brincar tem a ver com o seu trabalho. Precisamos reconhecer que já





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fomos crianças e relembrar como o brincar foi importante em nossa formação e, ao mesmo tempo, ver e escutar a criança que está diante nós.


As brinquedotecas



Pesquisadores franceses chamam a atenção para o fato de que a atuação nas brinquedotecas é sutil e muitas vezes pouco visível, o que contribui para uma certa insegurança quanto à sua importância. As características desta mediação são também bem amplas. As ações são marcadas pelas características de cada projeto.


Uma brinquedoteca é colocada em funcionamento por um profissional em função de um conceito geral que prescreve alguns aspectos de identidade e atendimento, mas também em função das concepções pessoais sobre, por exemplo, o que é brincadeira, criança e educação (Brougère e Roucous, 2003, p. 52).


A brinquedoteca em funcionamento numa creche, escola ou hospital pode contribuir para a formação de um olhar mais sensível para a criança, o brinquedo e a brincadeira. No entanto, há que se considerar que: 1) A atuação não se define apenas pela ação de favorecer a brincadeira com os brinquedos, mas por uma representação particular do lúdico que sustenta todas as práticas e que remete à gratuidade e à liberdade próprias do ato de brincar; 2) As pessoas que trabalham nesses locais devem ser capazes de aconselhar, apresentar, explicar e mediar a participação nos jogos e brincadeiras; 3) A atuação se caracteriza e se particulariza também por uma presença e por uma forma de se relacionar dinâmica e aberta, que tem como objetivo o desenvolvimento da atividade lúdica e, mais amplamente, o acolhimento da autonomia e da liberdade num contexto organizado e seguro.


Algumas experiências realizadas no Brasil mostram que os projetos se diferenciam muito. A sobrevivência e a repercussão na vida das comunidades atendidas são garantidas pelos objetivos dos projetos criados e pelas formas de persegui-los.









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Ao longo de minha atuação à frente da Brinquedoteca Hapi, tive em Walter Benjamin (1892-1940) uma referência fundamental. Dediquei-me a olhar para a brinquedoteca como um caminho possível para a promoção do encontro, da narrativa e da troca de experiências. A convivência entre crianças, pais, avós, familiares, babás e professores me levou a identificar a brinquedoteca como um espaço específico. Deparei-me com a exigência de uma mediação particular que abria um leque de questões sobre a nossa história, nossa cultura e nossos modos de representação sobre a infância, o brinquedo e a brincadeira. Estávamos o tempo todo de olhos abertos para o brinquedo como objeto especial, pleno de significados; para sua apropriação pelas crianças; para as falas e reações dos adultos; para as brincadeiras que surgiam; para a arrumação e a organização do espaço e para nós mesmas.


Minha equipe e eu aprendemos que a brinquedoteca pode ganhar uma dimensão de elo com o passado e com a história que sobrevive em cada brinquedo e em cada um de seus freqüentadores, gerando a possibilidade não só de reconexão com o passado, mas também com o presente e o futuro. Na medida em que se estabelece um diálogo com o passado, novos sentidos se constroem e diferentes perspectivas também se anunciam... Nesse sentido, agíamos para que a brinquedoteca fosse um espaço de acolhimento, pertencimento e vínculo. A própria história era vista como abrigo, pois gera a noção de pertencimento a uma história coletiva, dando referência aos freqüentadores e os acolhendo em uma história maior (Gusmão 2003).


O objetivo geral dessa série é apresentar as questões atuais que envolvem a criança e o brinquedo e possibilitar que os adultos envolvidos com a educação reflitam e desenvolvam ações, tendo como base a importância e a necessidade do ato de brincar.


Para compreender o que está em jogo quando a criança brinca, se faz necessário analisar o suporte material ou imaterial que desencadeia tal ato, o ambiente, os momentos a ele destinados e as pessoas que dele participam, pois as crianças precisam de tempo, espaço, companhia e material para brincar. Quanto mais elas possam ver, ouvir ou experimentar, quanto mais consigam aprender e assimilar, quanto mais elementos reais estejam disponíveis em suas experiências, tanto mais considerável e produtiva será a atividade de sua imaginação.




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Conhecer o universo dos brinquedos e jogos pode funcionar como um passaporte para conhecer diversas realidades, do passado ou do presente. A curiosidade despertada, o encantamento provocado, a emoção sentida, as reações diferentes diante de cada jogo ou brinquedo, são reveladores da cultura lúdica e das diferentes maneiras de lidar com o mundo que é apresentado por seu intermédio.


Em 2006, a Brinquedoteca Hapi deixou de funcionar. O acervo, tão manuseado e tão querido, foi doado para uma brinquedoteca inserida no Centro Cultural da Criança, um projeto coordenado pelo Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) no Morro dos Macacos, em Vila Isabel. A oportunidade de descobrir os jogos, as fantasias e os brinquedos que alimentaram a infância dos freqüentadores do Museu da República foi estendida a outras crianças. Esse acervo, que acabou se transformando numa coleção muito peculiar, conta uma experiência. Nessa mudança, essa história vem se entrecruzando, num espaço novo, com outras práticas e outras histórias.


A série Jogos e brincadeiras: desafios e descobertas (2ª edição) retoma as discussões sobre este tema que foram apresentadas e debatidas na série com o mesmo nome, veiculada no programa Salto para o Futuro no ano de 2003. A proposta pedagógica foi revista e atualizada e foram mantidos os textos dos cinco programas.

Temas que serão debatidos na série Jogos e brincadeiras: desafios e descobertas (2ª edição), que será apresentada pela no programa Salto para o Futuro/ TV Escola, de 12 a 16 de maio de 2008:




PGM 1 -    Pensando a infância e o direito de brincar



Que lugar foi ocupado pela criança nos diversos momentos históricos? A história da infância no Brasil tem contornos próprios, pela maneira como se deu sua construção. São as formas de organização da sociedade e as condições de existência e de inserção da criança em cada




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contexto social, econômico, político e cultural que vão delineando as diferentes concepções de infância e as diferentes formas de ser criança. Portanto, nas histórias individuais e coletivas das crianças brasileiras não tivemos e não temos uma resposta única às perguntas: o que significa ser criança? Quando deixamos de ser crianças e nos tornamos adultos?

PGM 2  - O brinquedo como objeto de cultura



Existem dimensões funcionais e simbólicas inscritas no brinquedo. Podemos compreender essas dimensões a partir do material de que foi fabricado, da forma e/ou desenho, da cor, do aspecto tátil, do cheiro e dos sons nele encontrados. Que conhecimentos podem ser revelados por meio dos brinquedos e materiais lúdicos oferecidos às crianças? O que indicam os brinquedos que compõem os acervos das creches e das escolas? Como estão arrumados? Que propostas lúdicas podemos encontrar?


PGM 3 - Brincadeira ou atividade lúdica?



O que é a brincadeira? O que está em jogo quando a criança brinca? A brincadeira é um processo de relações entre a criança e o brinquedo e das crianças entre si e com os adultos. O ato de brincar é muito importante para o desenvolvimento integral da criança. As crianças se relacionam de várias formas com significados e valores inscritos nos brinquedos. Existem várias possibilidades de brincar: solitariamente; em grupo; entre crianças de idades diferentes; entre adultos e crianças; de adultos entre si. Existem diferenças também entre: brincadeiras organizadas pelas próprias crianças; brincadeiras tradicionais; jogos; atividades lúdicas propostas pelo adulto, com conteúdos específicos a serem atingidos. Como garantir o espaço e o tempo para que as diversas modalidades de brincar aconteçam? A escola tem garantido o direito da criança à brincadeira? Quais são os desafios e as possibilidades?


PGM 4 - Jogos e brincadeiras no contexto escolar











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A grande maioria dos jogos tradicionais já era muito antiga no século XVI. Alguns deles, como a amarelinha, por exemplo, continuam sendo capazes de despertar a curiosidade e o prazer das crianças nos dias de hoje. Se os jogos tradicionais têm força para atravessar o tempo e o espaço, por que tão poucos conseguem atravessar os muros das escolas? São várias as condições necessárias para o desenrolar de jogos e brincadeiras, garantindo certa liberdade de escolha pela criança. O papel do adulto é fundamental nesse processo, pois o ambiente que a cerca influencia suas experiências lúdicas. Como planejar ações que respeitem a criança e suas formas de expressão?


PGM 5 - A formação lúdica do professor



Quais as experiências de formação vividas pelos professores? Em que medida a importância do brinquedo e da brincadeira é levada em conta nesse processo? Essa formação deve ser permanente e deve favorecer uma ampla formação cultural, para que os professores possam redimensionar o seu olhar sobre as crianças e suas práticas. O espaço da escola possibilita experiências e práticas socioculturais para todos os sujeitos envolvidos. Como deve ser uma formação que permita aos adultos experimentarem, descobrirem e conhecerem as possibilidades que os jogos, brinquedos e brincadeiras possuem? Que experiências existem na perspectiva de proporcionar uma experiência transformadora, que contribua para a construção de uma outra concepção do lúdico e para uma intervenção de melhor qualidade junto aos alunos, independentemente da idade que tenham?

Referências Bibliográficas


BROUGÈRE, G. e ROUCOUS, N. (org.) Le metier de ludothécaire: rapport d’une recherche realisée par étudiants du DEES en sciences du jeu: Université Paris 13, sous la direction de Brougère e Roucous, em partenariat avec l’Association des Ludothèques Françaises, septembre, 2003.










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DEBORTOLI, J. A. Educação Infantil e conhecimento escolar. In: Carvalho, A. [et al] (orgs.) Brincar(es). Belo Horizonte: Ed. UFMG; Pró-Reitoria de Extensão/UFMG, 2005.

GUSMÃO, D. Cartas para ti. PUC-Rio, mimeo, 2006.

PEREIRA, E. T. Brincar e criança. In: Carvalho, A. [et al] (orgs.) Brincar(es). Belo Horizonte: Ed. UFMG; Pró-Reitoria de Extensão/UFMG, 2005.






Nota:

Coordenadora    da    Brinquedoteca    HAPI    e    professora    do    Curso    de

Especialização em Educação Infantil da PUC-RIO. Consultora desta série.











































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PROGRAMA 1


PENSANDO A INFÂNCIA E O DIREITO DE BRINCAR

Patrícia Corsino1




Marinheiro (Carlos Drummond de Andrade)


A roupa de marinheiro sem navio

Roupa de fazer visita

Sem direito de falar

Roupa-missa de domingo,

Convém não amarrotar.

Roupa que impede o brinquedo

E não pode sujar.

Marinheiro mas sem leme,

Se ele nunca viu o mar

Salvo em livro,

E vai navegando em seco

Por essa via rochosa

Com desejo de encontrar

De costurar esta âncora no braço

E pendurar esta fita no gorro.

Ah, se o pudesse pegar!


Neste poema, Drummond dá voz ao menino Carlos que usava, contrariado, uma roupa típica de classe média do início do século. Roupa de menino, semelhante à que minha avó ganhou de aniversário, para justamente poder brincar no quintal, subir em árvores, coisas que menina não fazia no início do século XX e que, para fazê-lo, precisava se travestir. Nos poucos versos, o menino fala do seu tempo sócio-histórico, com seus costumes e comportamentos. A transgressão, presente no pensamento, estava presa por fitas e âncoras. O menino navegava em seco, mas navegava conforme o barco da sua vida. E, se já vai longe o tempo da roupa de marinheiro, estaria também longe aquela forma de ser criança?


A resposta caminha entre o sim e o não. Na superfície do poema, a mudança é visível, no inconformismo do marinheiro, que mesmo no seco navegava; há a permanência de uma característica bastante presente na infância: a reversão da ordem. Característica poeticamente



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definida por Walter Benjamin (1984-1993), filósofo e crítico da cultura, no fragmento sobre a criança desordeira. O mesmo menino, cantado em versos por Manoel de Barros, que carregava água na peneira e enchia os vazios com os seus despropósitos (1999, p. 9-22).

Desordem e despropósitos, inversões e reproduções da situação real, típicas da brincadeira infantil. A mesma reversão presente na brincadeira do menino de uma escola de Educação Infantil da rede municipal de ensino do Rio, quando brincava com os amigos de cheirar uma

“carreirinha de cocaína”, o que assustou a professora2 pela explicitação crua da sua exposição a uma situação de risco. Tal exposição não deveria acontecer a uma criança, que tem direito à proteção, mas, por fazer parte da sua realidade, veio à tona na brincadeira, tornando-se denúncia e anúncio de possibilidade de ressignificação.


Na fala que acompanha as ações do jogo, dando uma nova ordem às coisas, a criança traz simultaneamente o vivido e o novo, construindo cultura, refletindo e refratando a realidade na qual está inserida (Bakhtin, 1992). E se hoje é possível ouvir a voz do menino Carlos e de tantos outros meninos, não é nem foi sempre assim, pois a construção de uma concepção de infância, além da condição biológica de fragilidade e de dependência do adulto, está em processo e em mudança.


Este primeiro texto que introduz a série Jogos e Brincadeiras: desafios e descobertas (2ª edição), do programa Salto para o Futuro, tem como objetivo discutir a infância enquanto uma categoria histórica e cultural, rompendo com a idéia de natureza infantil tão disseminada nos meios educacionais. Ao longo da história e para diferentes classes sociais foram sendo construídas diferentes concepções de infância. Porém, hoje, ao se entender a criança como sujeito imerso na cultura e com sua forma singular de agir e pensar, não se pode deixar de pensar no tempo e no espaço da brincadeira como a própria forma de a criança conhecer e transformar o mundo em que vive. Se o interesse e o gosto pelos jogos e brincadeiras não são características genuinamente infantis, não há dúvida de que o direito de brincar é o elo que liga todos os outros direitos.








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Infância: uma construção histórica e cultural



Quando pensamos nas características que seriam genuinamente infantis, nós nos deparamos com questões que remetem à nossa condição de adultos; o que caracterizaria ser adulto? O que diferencia a infância da fase adulta? Quando deixamos de ser crianças? Quando as crianças passam a ser adultos?


A noção de infância não é uma categoria natural, mas sim histórica e cultural. A diferenciação entre crianças e adultos vai depender do contexto e das condições sócio-históricas e culturais em que vivem.


Numa perspectiva histórica sobre a infância na Europa, os estudos de Philippe Ariès (1986) no seu livro História Social da Criança e da Família, revelaram que a idéia de infância, no sentido de diferenciação do adulto, é uma construção da modernidade, começando a surgir nos finais do século XVII, nas camadas superiores da sociedade, e se sedimentando no século XVIII.


De acordo com esse autor, na Idade Média, assim que a criança tornava-se mais autônoma em relação aos cuidados da mãe ou da ama, logo se inseria na sociedade dos adultos, participando dos seus trabalhos e jogos. As crianças adquiriam seus conhecimentos junto aos adultos, sendo entregues às famílias, muitas vezes desconhecidas, para serem educadas, prestarem serviços domésticos ou aprenderem algum ofício. A escola da Idade Média não se dirigia especificamente à criança. Segundo Ariès, foi a partir de uma série de mudanças na sociedade – ascensão da burguesia, difusão do texto impresso e crescente interesse pela alfabetização e pela moralização – que a separação ocorre. A criança deixa de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles, sendo separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (p. 11).








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Para Ariès, esse processo só foi possível com a cumplicidade da família, que passou a experimentar uma afeição pela criança, trazendo para si a responsabilidade pela sua proteção e formação, e tornando-se nuclear. A sociabilidade extensiva do Antigo Regime foi sendo substituída por uma socialização mais restrita à família e à escola. Como o próprio autor coloca, não se pode dizer que as crianças eram negligenciadas ou tratadas com desprezo; especialmente os pequenos eram paparicados, como “animaizinhos de estimação”, mas pela sua análise, não existia um sentimento de infância. Foi a importância dada à educação que trouxe as crianças para o núcleo familiar e, com ela, dois ingredientes contraditórios passaram a fazer parte da sua formação: a ternura e a severidade. Sentimentos traduzidos em forma de “paparicação” dos adultos pela criança, por considerá-la ingênua, inocente e graciosa, e em “moralização”, por considerá-la como ser incompleto e imperfeito, que precisa ser educado3. Sentimentos que, até os dias atuais, trazem a dualidade anunciada por Pinto (1997), em que

“uns valorizam aquilo que a criança já é e que a faz ser, de fato, uma criança; outros, pelo contrário, enfatizam o que lhe falta e o que ela poderá (ou deverá) vir a ser. Uns insistem na importância da iniciação ao mundo adulto; outros defendem a necessidade da proteção em face desse mundo. Uns encaram a criança como um agente dotado de competências e capacidades; outros realçam aquilo de que ela carece” (p. 33).


À sombra dos adultos: a construção histórica da infância no Brasil



As pesquisas de Ariès e as reflexões advindas a partir delas, embora bastante importantes e inovadoras ao trazerem o sentimento de infância enquanto uma construção histórica, sofreram críticas na época de sua publicação pela própria interpretação do autor em relação à não existência do sentimento de infância no Antigo Regime e por refletirem uma realidade européia que, embora tenha tido uma forte influência no mundo ocidental, não pode ser generalizada ou transportada mecanicamente para outras realidades sociais como, por exemplo, a brasileira. Kramer (1996) alerta para este fato, trazendo as marcas da nossa diversidade no processo de socialização de adultos e crianças:


“Dada a diversidade de aspectos sociais, culturais e políticos que interferiram na nossa formação: a presença da população indígena e seus costumes, o longo período de




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escravidão brasileira, e ainda as migrações, o colonialismo e o imperialismo, inicialmente europeu e mais tarde americano, forjaram condições que, sem dúvida, deixaram marcas diferenciadas no processo de socialização de adultos e crianças” (p.20).

Desde os primórdios da colonização, as diferenças contrastantes da nossa sociedade, pela distribuição de renda e de poder, fizeram emergir infâncias distintas para classes sociais também distintas. O significado social dado à infância não foi homogêneo pelas próprias condições de vida das nossas crianças. Portanto, usando as palavras de Del Priori (2000, p.11), “a historiografia internacional pode servir de inspiração, mas não de bússola” para se pensar a construção deste sentimento entre nós. E a autora ainda afirma que a história da criança brasileira não foi diferente da dos adultos, tendo sido feita à sua sombra. Sombra de uma sociedade que viveu quase quatro séculos de escravidão, tendo a divisão entre senhores e escravos como determinante da sua estrutura social. Tomando a história do Brasil, fica bastante evidente que a escolarização e a emergência da vida privada burguesa e urbana não foram os pilares que sustentaram a construção do nosso sentimento de infância.


O ensino público só surgiu a partir da segunda metade do século XVIII, durante o governo do Marquês de Pombal, sendo também de acesso restrito. Na época da Independência, o Brasil já acumulava dificuldades em relação aos centros urbanos. O Rio de Janeiro, sede do governo, tornou-se uma cidade inchada e com grandes problemas socioeconômicos: habitantes pobres da periferia buscavam pelas ruas meios de sobreviver, esmolando, comercializando e exercendo pequenos serviços. As crianças das classes mais abastadas eram educadas por preceptores particulares, não tendo freqüentado escolas até o início do século XX, e os filhos dos pobres, desde muito cedo, eram considerados força produtiva, não tendo a educação como prioridade. Desde os pequenos grumetes recrutados nos portos de Portugal para servirem nos navios, aos filhos dos escravos, mestiços e imigrantes, às crianças pobres brasileiras coube o trabalho e não a escola (Del Priori, 2000, p.12). Este fato não pertence a um passado, é ainda visível nos dias de hoje, seja nos grandes centros urbanos, em que se vêem crianças vendendo mercadorias em sinais de trânsito, pedindo esmolas ou exercendo serviços diversos, ou trabalhando nas áreas rurais, nas lavouras domésticas e na monocultura. Crianças de várias idades contribuem efetivamente para a economia doméstica, deixando a escolarização em





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segundo plano. São os nossos trabalhadores invisíveis, exercendo um papel produtivo, com a infância atravessada e os sonhos adiados.


No Brasil, é muito recente a democratização da escolarização. Pelos dados do MEC (2002), temos hoje 97% das crianças de 7 a 14 anos matriculadas na escola e a taxa de freqüência líquida cresceu de 78,1% em 1992 para 96,3% em 2000. Porém, isto não significa a eliminação do trabalho infantil. O relatório Um Futuro sem Trabalho Infantil, divulgado em maio de 2002, pela OIT – Organização Internacional do Trabalho –, revela que, no Brasil, 7 milhões e 622 mil crianças, em média, estão envolvidas com algum tipo de atividade, seja ela remunerada ou não.


Quanto à vida privada, a nossa sociedade agrícola e rural manteve, durante muito tempo, a estrutura social colonial descrita nos livros de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos. Estes relatos trazem a importância que a família extensa dos senhores de engenho teve na nossa formação social e econômica, mostrando o quanto as relações familiares não eram apenas relações afetivas de confiabilidade, mas também relações de poder que caracterizaram as relações sociais. Ainda hoje, os resquícios destas relações aparecem em diferentes situações, como garantia de benefícios e/ou privilégios. Ser parente de alguém de poder seria algo positivo e confiável, abrindo portas nas mais diversas situações como indicações de emprego, “pistolões” e até mesmo o nepotismo. O modelo familiar, construído a partir da casa grande, seria a de um casal com filhos, articulado a uma rede ampla de parentesco (avós, tios, primos, sobrinhos), ou seja, a família extensa, aglutinando várias famílias conjugais, cujos homens, casados com muitos filhos, teriam a função ativa de provedores e as mulheres valorizadas pelo número de filhos que tivessem (Medina, 2002).


Entretanto, o contingente populacional de escravos, propriedade de terceiros, não tinha o direito de constituir família. Até a promulgação da Lei do Ventre Livre, os filhos dos escravos eram considerados propriedade dos senhores. Quando sobreviviam aos primeiros anos de vida, moravam nas senzalas numa grande coletividade, trabalhando desde pequenos, inicialmente acompanhando as mães e depois de forma independente. A existência ou extensão de uma rede familiar entre os escravos dependia da flutuação do tráfico e do




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comércio de escravos. Por isso, seus laços familiares eram mais de compadrio que sangüíneos4.

Por outro lado, Del Priori (2000) relata o quanto a evolução da intimidade entre nós foi precária em todas as classes sociais. A vida privada brasileira foi conquistada recentemente e pelos grupos mais favorecidos da sociedade. A falta de privacidade nas periferias urbanas ainda é um fato presente nos lares super habitados, nos espaços partilhados das favelas e “quintais”, onde parentes e vizinhos convivem numa grande sociabilidade.


A inadequação das teses européias diante da nossa realidade, no entanto, permite debruçar sobre a nossa história e entender que o sentimento de infância foi sendo construído dentro da mesma lógica dicotômica escravista de senhores e escravos, repleta de distorções e fruto de desigualdade. Enquanto os filhos dos senhores mandavam e o adulto escravo obedecia, os filhos de escravos, de mestiços, de imigrantes5, diante da pobreza e da falta de escolarização trabalhavam6. Na sombra dos adultos, de uma sociedade estratificada, foram sendo construídas as muitas histórias das crianças brasileiras.


São as formas de organização da sociedade e as condições de existência e de inserção da criança em cada contexto social, econômico, político e cultural que vão delineando as diferentes concepções de infância e as diferentes formas de ser criança. Portanto, nas histórias individuais e coletivas das crianças brasileiras, não tivemos e não temos uma resposta única às perguntas: o que significa ser criança? Quando deixamos de ser crianças e nos tornamos adultos?


Os paradoxos da infância hoje



Fazendo um breve percurso sobre alguns discursos produzidos sobre a criança, que foram de alguma forma sendo apropriados pelos educadores e pelo conjunto da sociedade e que acabam influenciando a maneira de as crianças agirem e pensarem, observa-se que se partiu do entendimento da criança como um ser diferente do adulto apenas quantitativamente, pela sua





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menor idade, menor tamanho e menos força (física e produtiva) e, posteriormente, as diferenças quantitativas cederam lugar às qualitativas e a criança surge como um ser distinto do adulto por sua maneira própria de perceber, conhecer e sentir. No entanto, a diferença quantitativa, aparentemente superada, retorna como falta cognitiva, instaurando a dicotomia anteriormente citada, em que ora se valoriza aquilo que a criança é e faz, ora o que lhe falta e o que lhe poderá (ou deverá) vir a ser. A teoria de Vygotsky sugere uma síntese, não como soma ou justaposição entre o ser e o vir a ser da criança, mas entende que no agora de cada criança intrinsecamente está presente o que foi antes e o que será depois. Sua abordagem sócio-histórica também desconstrói a idéia abstrata e neutra de infância, situando-a ativamente na cultura.


Cabe ressaltar que diferentes enfoques coexistem de forma contraditória, não só no senso comum, como também nos estudos sobre a infância. Ao mesmo tempo em que a produção cultural para a infância cada vez mais se especializa, segregando as diferentes faixas etárias, e que a escola elege conteúdos e informações que considera próprios para cada idade ou série, as crianças têm acesso irrestrito, pela mídia, meios eletrônicos e pelo convívio familiar e social, às mais diversas informações. Ao mesmo tempo em que esperam das crianças comportamentos “infantis”, os adultos cobram delas responsabilidades e posturas, se assustando quando se comportam como adultos.


Neil Postman (1999), por exemplo, postula sobre o desaparecimento da infância, levando em conta a ausência hoje dos três fatores que, como já vimos, compõem as teses de Ariès sobre o surgimento do sentimento de infância: a alfabetização, o conceito de educação e de vergonha.

Segundo este autor, com a TV, a base da hierarquia da informação desmorona, pois ela apresenta a informação numa forma indiferenciada na sua acessibilidade, não fazendo distinção entre a categoria criança ou adulto. Para Postman, isto se dá porque a televisão não requer treinamento para apreender sua forma, não faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento, não segrega seu público (p.94). Desta forma, considera que a TV, juntamente com os outros meios de comunicação eletrônicos, recria as condições de comunicação que existiam no século XIV e XV, não havendo mais segredos, sentimentos de




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vergonha, nem distinção entre público e privado, adulto e criança. E ainda argumenta que neste ambiente informacional tanto a autoridade do adulto, quanto a curiosidade da criança perdem terreno, pois se quebra tanto a ordem intelectual hierárquica criada pela alfabetização, quanto a ordem social hierárquica criada pela conquista das boas maneiras. Ao anunciar o desaparecimento da infância, sugere aos pais resistirem ao espírito da época, pois não é concebível que nossa cultura esqueça que precisa de crianças. Mas está a caminho de esquecer que as crianças precisam de infância (p. 167).


Estes argumentos mostram um certo espanto em relação à inserção cultural da criança e sua contextualização sócio-histórica. Se a escolarização, com o controle da informação e da moralização da criança, bem como a constituição da vida privada, não serviram como base para o surgimento do sentimento de infância no Brasil, tais argumentos caberiam hoje? Por sua vez, a ordem intelectual hierárquica seria dada unicamente pela alfabetização e pelo saber intelectual letrado? E os outros saberes das crianças como, por exemplo, a familiaridade que algumas têm com o computador ou com as músicas que ouvem, cantam e tocam? A ordem social hierárquica não estaria na divisão de classes sociais, gênero, religião ou até mesmo na relação entre idade e força produtiva, com suas tensões e conflitos, vividos pelas crianças no seu cotidiano? Como seria esta resistência ao espírito da época? Negação do que está posto e volta ao que se perdeu? Que infância é esta de que as crianças precisam?


A infância hoje vive uma série de paradoxos, difíceis de serem rompidos, pois estão presentes nas concepções e formas de agir com a criança em âmbito familiar e nas políticas públicas voltadas para a infância. Como explicitam Sarmento e Pinto (1997, p.12), pensa-se a criança tanto como alguém dotado de competências e capacidades, como alguém em falta; discute-se a autonomia da criança e, ao mesmo tempo, criam-se instrumentos de controle e tutela cada vez mais sofisticados; sabe-se da necessidade de atenção que a criança pequena necessita e nunca os pais tiveram tão pouco tempo de convivência com os filhos; condena-se o trabalho e a prostituição infantis e, a cada dia, o número de crianças vivendo em absoluta pobreza aumenta e não se consegue tirá-las das situações de risco e violência; discutem-se os direitos da criança, mas não se criam condições para as suas garantias. E assim se continua olhando a criança como o futuro do mundo, num presente de opressão.




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Que infância é esta de que as crianças precisam?



As condições impostas às crianças, em diferentes lugares, classes sociais e momentos históricos, revelam que não é possível viver uma infância idealizada, pretendida e legitimada; vive-se a infância possível, pois a criança está imersa na cultura e participa ativamente dela. Mas as desigualdades de condições de ser criança não excluem a especificidade da infância, enquanto experiência individual e enquanto categoria social. Os estudos de diferentes áreas, ao longo da história, têm permitido pensar a infância sob vários enfoques e os Direitos da Criança, que foram aprovados pelas Nações Unidas, numa Convenção em 1989, têm servido como anúncio e denúncia da situação em que se encontram as crianças dos diferentes contextos sociais, econômicos, religiosos e culturais. Embora nada disso tenha sido suficiente para garantir uma melhora das condições de vida de muitas crianças, pela inconsistência das políticas para a infância, não se pode desconsiderar esta especificidade.


Os direitos fundamentais e inalienáveis das crianças, legitimados no Brasil pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, em 1990, podem ser resumidos em três eixos: proteção, provisão e participação. Todo conhecimento acumulado sobre a infância permite entender hoje a importância da brincadeira como um elo de ligação de cada um destes três eixos. Para se desenvolver plenamente e participar ativamente do mundo em que vive, a criança precisa brincar.


Vygotsky (1991) considera a brincadeira uma grande fonte de desenvolvimento que, como foco de uma lente de aumento, contém todas as tendências do desenvolvimento de forma condensada. Para o autor, a brincadeira fornece ampla estrutura básica para mudanças das necessidades e da consciência. Pois, nas brincadeiras, as crianças ressignificam o que vivem e sentem. Para Brougère (1999), na brincadeira de faz-de-conta se estabelece uma forma de comunicação que pressupõe um aprendizado, com conseqüência sobre outros aprendizados, pois ele permite desenvolver um melhor domínio sobre a comunicação, abrindo possibilidades para a criança entrar num mundo de comunicações complexas, distinguindo realidade, invenção, imaginação, etc. E, ainda, afirma que a brincadeira implica tomar decisões, mesmo que simples, como a risada de um bebê sinalizando sua aprovação em relação à brincadeira da




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mãe. Decidir brincar é aceitar uma proposta, seja ela vinda de um parceiro, de uma brincadeira ou de um jogo com regras preestabelecidas.


Portanto, a infância necessária para todos é a que tenha, além de casa, comida, carinho, saúde e educação, um tempo e um espaço de brincar garantidos. E cabe a cada um de nós, especialmente quando lidamos diariamente com as crianças, tentar romper com alguns paradoxos da infância, permitindo e favorecendo o brincar.



Bibliografia

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VYGOTSKY, L. S. Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 4a edição, 1991.




Notas:

1 Doutoranda e Mestre em Educação pela PUC-RIO, professora do Curso de Especialização em Educação Infantil pela PUC-RIO.

2 Ver BARCELLOS, Simone (2001).

Ver KRAMER, Sonia (1982).

4 Segundo Góes e Florentino (2000, p. 182), o compadrio católico unia escravos e unia plantéis. É interessante observar que, ainda hoje, a palavra padrinho carrega a marca da proteção. Ter um padrinho no trabalho é ter alguém que possa garantir a estabilidade e acobertar as faltas ou desvios. O dito popular endossa esta idéia: quem tem padrinho não morre pagão. É ainda costume das classes populares chamar o patrão/patroa, alguém de prestígio ou de uma classe social mais favorecida, para batizar os filhos.

5 No final do século XIX, a entrada maciça de imigrantes como força de trabalho, no início da nossa industrialização, trouxe a imagem das crianças trabalhando nas fábricas, como operários de baixo custo e que chegavam a passar até 11 horas frente às máquinas.

6 Segundo Del Priori (idem, p.12), as mulatas ou negras forras e seus pais, que integravam o movimento de mobilidade social ocorrido em Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, tiveram eles também os seus escravos. Muitas vezes seus próprios parentes ou até mesmo os irmãos!






















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PROGRAMA 2


O BRINQUEDO COMO OBJETO DE CULTURA

Cristina Laclette Porto1

Brinquedos industrializados e artesanais



A inusitada peteca (Lúcio Costa)


Alguém me deu de presente, em fevereiro, esta peteca. É rosa, com penas de laivos verdes, amarelos e brancos; é luminosa e leve, mas tem carga latente. Ficou desde então pousada sobre a mesa, à espera. À espera apenas de um gesto (In extremis).


Essa poesia é um dos muitos registros de vivência deixados pelo arquiteto Lúcio Costa. E, neste texto, representa um convite. Vamos imaginar os vários caminhos que a peteca percorreu até chegar às mãos de uma criança?

Quem a teria feito? Por que escolheu essas cores? As petecas são todas necessariamente leves? Por que alguém escolheu exatamente aquela para dar de presente? A que carga latente o arquiteto se refere? Por que foi colocada sobre a mesa? O gesto esperado é o de uma criança curiosa ou de um adulto ansioso em revelar sua infância, demonstrando destreza no jogo?

Do brinquedo à brincadeira, todo um universo está condensado à espera daqueles que se disponham a descobri-lo. Vários autores de diversas áreas mergulharam na história dos jogos e dos brinquedos. Apenas para citar alguns, destaco Johan Huizinga, Walter Benjamin, Philippe Ariès, Roger Caillois e Gilles Brougère.


Num dos ensaios do filósofo alemão Walter Benjamin (2002), escrito entre 1928 e 1930, sobre a história dos brinquedos, o autor alerta que há um grande equívoco na suposição de que são simplesmente as próprias crianças, movidas por suas necessidades, que determinam todos os brinquedos. As crianças, quando brincam, se defrontam o tempo todo com os vestígios que as gerações mais velhas deixaram. O brinquedo, mesmo quando não é apenas





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miniatura de objetos que circulam no mundo dos adultos, é confronto, não tanto da criança com os adultos, mas destes com a criança. Não são os adultos que, em primeiro lugar, oferecem esses objetos às crianças?


Para Brougère (1992), olhar para o brinquedo é se confrontar com o que se é ou, ao menos, com a imagem do mundo e da cultura que se quer mostrar à criança. O brinquedo é um objeto que traz em si uma realidade cultural, uma visão de mundo e de criança.

Nesse sentido, dependendo do material de que foi fabricado – madeira, espuma, ferro, pano ou vinil; da forma e/ou do desenho – bonecas bebês ou adultas; do aspecto tátil – bichos de pelúcia ou de borracha; da cor – panelinhas cor-de-rosa; do cheiro e dos sons que porventura emitam, os brinquedos oferecem possibilidades de experiência variadas.


Em outros tempos, o brinquedo era a peça do processo de produção que ligava pais e filhos. Madeira, ossos, tecidos, sementes, pedras, palha e argila eram os materiais usados para sua construção. Antes do século XIX, a produção de brinquedos não era função de uma única indústria. Dos restos dos materiais usados nas construções, os adultos criavam objetos que, de um modo ou de outro, iam parar nas mãos das crianças. No entanto, nem sempre foi assim.

Foi o reconhecimento da infância como fase específica da vida, com suas características e necessidades, que possibilitou identificar-se o brinquedo como objeto infantil. Esse novo olhar para a criança e para o brinquedo é resultado de um longo processo histórico, analisado por Patrícia Corsino no texto referente ao primeiro programa da série.


A partir do século XIX, quando o brinquedo deixa de ser o resultado de um processo doméstico de produção, que unia adultos e crianças, para ser comercializado, sua forma, tamanho e imagem mudam. As miniaturas cedem lugar aos objetos maiores, indicando que, cada vez mais, a criança passa a brincar sozinha, sem a parceria do adulto.










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Beatriz Muniz Freire (1999), no catálogo da exposição intitulada “Dim: as artes de um brincante”, realizada na Sala do Artista Popular do Museu do Folclore do Rio de Janeiro, analisa as influências que a industrialização exerceu sobre o brinquedo artesanal. Principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, o uso do plástico substituiu materiais como madeira, cera e pano e permitiu o desenvolvimento de uma produção em série.


No âmbito dos brinquedos artesanais, a partir desse momento, iniciou-se o que Paulo Salles de Oliveira (1989) chamou de industrianato, brinquedos inspirados nos artesanais, feitos em série, com temas ditados pela mídia e que, na reprodução, escondem a autoria do artesão; e os chamados brinquedos de autor. Essa denominação é dada àqueles objetos que guardam um caráter local. São brinquedos em que a identidade de um grupo pode ser reconhecida, como as bonecas de pano do Agreste paraibano, ou guardam características de seu idealizador, como os brinquedos feitos por um jovem cearense, conhecido como Dim. Antonio Jader Pereira dos Santos, o Dim, recria, com extrema habilidade, brinquedos tradicionais, dando-lhes novas formas e cores e, por vezes, novo uso. O artesão é porta-voz de vivências coletivas e, ao mesmo tempo, autor de um discurso muito próprio, que ele inscreve em suas criações.


Atualmente, portanto, a quantidade de brinquedos é enorme e sua qualidade varia tanto no brinquedo artesanal quanto no brinquedo industrializado.


A História, no entanto, não é única e linear. Existem povos que viveram processos distintos de desenvolvimento e que atribuem diferentes noções de família, adulto ou criança. Tal fato nos leva a perceber que os significados e valores dados aos brinquedos e brincadeiras vão variar de acordo com o tempo e com o contexto.


Os grandes centros urbanos, em geral, passaram por transformações que permitem identificar características semelhantes em várias partes do mundo. Até a metade do século XX, as cidades não eram tão grandes nem tão violentas e havia espaços para brincar na rua, no quintal, nos terrenos vazios e nas praças. Grupos de crianças de idades e origens sociais variadas participavam das brincadeiras. O brinquedo industrializado já circulava na cidade, mas era ainda restrito à classe média. A sociedade de consumo, no entanto, não tinha se




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consolidado e os adultos (pais, tios avós, vizinhos) ainda contribuíam ativamente para as experiências lúdicas das crianças, confeccionando bonecas de pano, carrinhos de madeira e bolas de meia, ou participando das brincadeiras, propondo cirandas, batendo corda ou riscando o jogo da amarelinha no chão. Gradativamente, no entanto, as crianças foram sendo alijadas do convívio com os adultos e do espaço urbano. O espaço das crianças foi se limitando cada vez mais, até se tornar um conjunto de pequenas áreas, ou locais de consumo. Houve um processo de infantilização da brincadeira e uma progressiva desvalorização já que, num mundo orientado pelo trabalho e pelo lucro, ela é considerada uma atividade não produtiva.


Deve-se levar em conta, também, que a forma de divulgação dos brinquedos modernos se alterou, interferindo na escolha do brinquedo pelo adulto. Agora, são as crianças que escolhem que brinquedos querem ganhar. E, nesse contexto, os brinquedos mais vendidos são aqueles mostrados pela televisão. A televisão é um meio privilegiado de atingir diretamente a criança. A própria veiculação por esse meio exige que o brinquedo tenha determinadas características. Deve ser comunicável, ou seja, explicável e comunicável através de imagens breves. “Através do brinquedo, como por meio da televisão, a criança vê sua brincadeira se rechear de novos conteúdos, de novas representações que ela vai manipular, transformar ou respeitar, apropriar-se do seu modo. Da mesma forma como para os conteúdos televisivos, os fenômenos do modismo e da mania regem a vida dos brinquedos” (Brougère, 1995, p.58).


Se grande parte das crianças entra cada vez mais cedo para instituições especialmente voltadas para elas, como as creches e as escolas, cabe a pergunta: que lugar o brinquedo e a brincadeira assumem nesse contexto? Que papel devem assumir os profissionais que atuam na área da educação?


Pedagogos como, Froebel, Montessori e Decroly chamaram a atenção para o valor educativo do jogo e fizeram com que muitos educadores reconhecessem a importância de tal atividade. Ainda hoje, os sistemas pré-escolares discutem se o jogo infantil é um ato de expressão livre, um fim em si mesmo ou um recurso pedagógico (Kishimoto, 2002).






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Brincar na escola é diferente de brincar em casa. Os brinquedos são da instituição; as possibilidades de brincadeiras em grupo são maiores e crianças da mesma idade costumam ficar sob a responsabilidade de poucos adultos. Todos esses fatores influenciam os modos de brincar e exigem reflexão.


Na área da educação, muitas vezes, a preocupação com o lúdico se manifesta apenas pela quantidade de brinquedos disponíveis no acervo, sem se levar em conta os significados que esses objetos carregam.


O acervo de brinquedos num espaço institucional, como creche e escola, deve fazer parte de uma proposta pedagógica que envolva os adultos e as crianças, pois o acervo de brinquedos é tão significativo quanto aos objetivos que aquela creche ou escola pretende atingir. Não se trata de tornar pedagógica toda e qualquer brincadeira, mas sim de compreender sua especificidade e importância.


A história do brinquedo permite que se compreenda que, ao longo dos séculos, a criança e o brinquedo assumiram diferentes significados. A convivência de crianças e professores com um conjunto de brinquedos diversos pode permitir que inúmeras experiências lúdicas se realizem e que as histórias neles contidas sejam lembradas, descobertas, transmitidas e questionadas.


Convido o leitor a pensar nos significados que emergem do seguinte conjunto de brinquedos:


u   bonecas de vários tipos: bebês e adultas, brancas e negras, de pano ou de vinil, sexuadas ou não, antigas ou novas?

u   transportes variados (barcos, carros, caminhões, aviões, trens) grandes e pequenos, de madeira ou de ferro?

u   bichos da fauna brasileira?

u   panelinhas de várias cores e tamanhos e materiais (barro, lata, vinil)?






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u   legumes e frutas de brinquedo ou de verdade?

u   embalagens vazias de vários produtos?

u   jogos da memória, de tabuleiro, cooperativos, quebra-cabeças, de origens culturais diversas e com temas que não se restrinjam àqueles impostos pela mídia?

u   jogos de construção em madeira, blocos para encaixe de plástico com peças grandes ou pequenas?

u   brinquedos tradicionais como “cinco marias”, pião, corda, bola de gude, “mané-gostoso”, “diabolô”?

u   roupas, sapatos, bolsas e acessórios para se fantasiar?

u   material para desenhar, colar, modelar, etc.?

u   pequenas coleções conchas, sementes, pedrinhas?

u   sucatas diversas?


Muitos são os brinquedos industrializados ou artesanais que se fundam em imagens estereotipadas. A cor rosa, por exemplo, foi associada culturalmente, entre nós, ao gênero feminino. Panelas nessa cor sugerem que esse tipo de brinquedo e, indiretamente, o ato de cozinhar se destinam às meninas. Neste caso, sejam de barro ou de plástico, a cor é o aspecto preponderante e reforça valores que devem ser questionados. Meninos não podem brincar de casinha?


Existem bonecas louras, negras, adultas e crianças – o que a presença marcante de apenas algumas delas nas lojas, nas residências e nos acervos escolares significa?


As crianças brincam com o que têm nas mãos e com o que têm na cabeça (Brougère, 1995)







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“Os brinquedos orientam a brincadeira, trazem-lhe matéria. Algumas pessoas são tentadas a dizer que eles a condicionam, mas então, toda a brincadeira está condicionada pelo meio ambiente. Só se pode brincar com o que se tem, e a criatividade, tal como a evocamos, permite, justamente, ultrapassar esse ambiente, sempre particular e limitado. O educador pode, portanto, construir um ambiente que estimule a brincadeira em função dos resultados desejados. Não se tem certeza de que a criança vá agir, com esse material, como desejaríamos, mas aumentamos, assim, as chances de que ela o faça; num universo sem certezas, só podemos trabalhar com probabilidades” (p. 105).



Uma proposta lúdica no contexto escolar deve considerar os significados inscritos nos brinquedos e como estes objetos podem chegar às mãos das crianças, de modo a proporcionar as mais diversas experiências. O brinquedo recheia de conteúdos as brincadeiras das crianças e as relações delas com os adultos. A brincadeira permite decidir, pensar, sentir emoções distintas, competir, cooperar, construir, experimentar, descobrir, aceitar limites, surpreender-se...


Mas será que os profissionais que atuam com as crianças tiveram uma formação que valorizasse sua própria criação, imaginação e ludicidade?


O certo é que a história de cada brinquedo se entrelaça à história de cada professor e de cada criança que dele se apropria. O interessante é que haja mais trocas entre adultos e crianças.

Referências Bibliográficas



BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas cidades/Ed. 34, 2002.

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FREIRE, B. M. Dim: as artes de um brincante. Rio de Janeiro: Funarte, CNFCP, 1999.


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KISHIMOTO, T. Froebel e a concepção de jogo infantil. In: Kishimoto, T. (org.) O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 2002.

Notas:

Coordenadora    da    Brinquedoteca    HAPI    e    professora    do    Curso    de

Especialização em Educação Infantil da PUC-RIO. Consultora desta série.



2Inusitado: não usado; desconhecido; esquisito; novo.















































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PROGRAMA 3

BRINCADEIRA OU ATIVIDADE LÚDICA?

Cristina Laclette Porto1




A imprecisão dos termos utilizados para definir brincar, brincadeira, jogo, brinquedo e lúdico tem uma explicação, pois é o resultado de diferentes significações, muitas vezes contraditórias, que circulam socialmente. Na Língua Portuguesa, a definição para as noções de jogo, brinquedo e brincar é bem complexa. Entre nós, o termo brincar é oriundo do latim vinculum, que quer dizer laço, união. Tal significado não possui equivalente nas línguas européias como o francês, inglês, alemão ou espanhol e possui uma especificidade (Santa Roza, E., 1993, p. 23 ).


No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda (1ª edição, 1975, p. 228), temos que do verbo latino vinclu, derivou-se vincro, depois vrinco, daí brinco, que significa laço. O que leva à idéia de que brincar é criar laços. Já o termo brinquedo é definido como “objeto que serve para as crianças brincarem; jogo de crianças; brincadeira; divertimento, passatempo; festa, folia, folguedo.” E encontramos ainda brincar como divertir-se infantilmente; entreter-se em jogos de criança ou ainda recrear-se, entreter-se, distrair-se, folgar.”


O termo jogar, por outro lado, é extensivo tanto às noções de brincar quanto a várias outras atividades, sendo usado mais freqüentemente para definir passatempos e divertimentos sujeitos a determinadas regras. Temos também o termo lúdico, que deriva do latim ludus, mais abrangente, que remete “às brincadeiras, aos jogos de regras, a competições, recreação, representações teatrais e litúrgicas” (Ibid. p. 24).


Para que uma atividade seja um jogo é necessário, então, que seja tomada e interpretada como tal pelos atores sociais em função da imagem que têm dessa atividade. Refazer esse percurso







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de identificar as várias significações que tais termos carregam pode contribuir para identificar e localizar nossas próprias concepções.


Longe de ser apenas uma atividade natural da criança, a brincadeira é uma aprendizagem social. As brincadeiras dos adultos com crianças bem pequenas são essenciais nessa aprendizagem. A criança inicia esse processo inserindo-se no jogo preexistente do adulto como um brinquedo, sem desempenhar, de imediato, um papel muito ativo. Nesse momento, o bebê não é ainda um parceiro do jogo, mas suas manifestações de contentamento, como risos e murmúrios, incentivam o adulto a continuar brincando. Em seguida, ele vai poder se tornar parceiro, assumindo o mesmo papel do adulto, mesmo que de forma desajeitada. Na brincadeira de esconder o rosto com um pano, por exemplo, a criança pequena aprende a reconhecer certas características essenciais do ato de brincar. São elas:

u   O aspecto fictício: trata-se de um faz-de-conta, pois o rosto não desaparece de verdade;

u   A troca de papéis;

u   A repetição, que mostra que a brincadeira não modifica a realidade, já que se pode sempre voltar ao início;

u   A necessidade de um acordo entre os parceiros.

Aos poucos, as crianças passam a usar essas estruturas preexistentes que definem a atividade lúdica em geral e cada brincadeira em particular. As crianças, portanto, as apreendem antes de utilizá-las em novos contextos, quer estejam sozinhas, em brincadeiras solitárias, quer estejam com outras crianças, em brincadeiras em grupo.


Ao identificar essas estruturas, Gilles Brougère (2002, p.22-23), professor de Ciências da Educação da Universidade Paris-Nord, chama a atenção para a presença de uma cultura preexistente que define o jogo, torna-o possível e faz dele, mesmo nas formas solitárias, uma atividade cultural que supõe uma aprendizagem. As crianças, quando brincam, não estão apenas entrando em contato com a cultura de uma forma geral. Quando se brinca, aprende-se, antes de tudo, a brincar, a controlar um universo simbólico particular.







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Existe uma cultura lúdica, ou seja, um conjunto de regras e significações próprias do ato de brincar ou jogar que aquele que brinca ou joga adquire e domina no contexto de suas brincadeiras. Para poder entrar no universo da brincadeira, é necessário que o indivíduo partilhe dessa cultura. Gostaria aqui de acrescentar que essa necessidade não diz respeito apenas às crianças, mas é pré-requisito também para os adultos.


Brougère (1995, p.99-100) identifica a existência de uma comunicação específica, uma metacomunicação, presente na brincadeira. Os parceiros precisam entrar em acordo sobre códigos que indicam que se trata de uma brincadeira. Há uma troca de mensagens que é feita através de sinais e que só é possível se existe um certo grau de metacomunicação. As significações podem ser explícitas ou implícitas; verbais ou não-verbais. É freqüente o uso de verbos no imperfeito, quadrinhas e gestos específicos que indicam a vontade de brincar. Quando a criança diz “Vamos brincar?” ou “Finge que você é um príncipe!”, ela está deflagrando a brincadeira e anunciando um determinado espaço, onde as atividades vão ter um outro valor.


Quando a criança é muito pequena e ainda não domina a fala, costuma fazer uso da linguagem gestual para indicar que quer brincar. Muitas vezes, sem dizer nada, entrega um brinquedo à outra criança, ou a um adulto. Muitos adultos, ao desconhecerem a importância e o significado destes códigos, limitam-se a empilhar, ao seu redor, os brinquedos oferecidos pela criança. É freqüente também, que digam: “Que carrinho bonito!” ou “Pegue um de cada vez, senão vira bagunça!”, comentários que não estimulam em nada a deflagração ou a continuidade de uma brincadeira. Ao se dar conta desses códigos, o adulto pode identificar a intenção da criança e corresponder ao convite, enriquecendo as possibilidades de desdobramento, se levar em conta que:

A brincadeira é uma mutação do sentido, da realidade: as coisas tornam-se outras. É um espaço à margem da vida comum, que obedece a regras criadas pela circunstância
(Brougère, G., 1995, p.99-100).


Quando um adulto alerta que a criança deve comer uma cenoura de plástico “Só de mentirinha!”, ele está, informalmente, ensinando que o espaço do jogo é peculiar. A partir




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dessas interações com adultos ou com seus pares, a criança vai, aos poucos, descobrindo que uma boneca não é um bebê de verdade, mas que pode fazer de conta que é. Essa aprendizagem acontece informalmente, pois caso contrário, se o adulto se dispuser a adotar métodos para ensinar as crianças a brincar, corre o risco de destruir a brincadeira. Essa é uma das principais diferenças entre brincadeira e atividade lúdica, como veremos mais tarde.

Para que haja a brincadeira, é necessária uma decisão dos que brincam: decisão de entrar na brincadeira, mas também de construí-la segundo modalidades particulares. Sem a livre escolha, não existe brincadeira, mas uma sucessão de comportamentos que têm origem fora daquele que brinca. Quando os adultos se afastam demais dessa atividade, acabam por ter, em geral, dificuldades em reconhecê-la. Não dispor dessas referências é não poder brincar.

A cultura lúdica não é única e imutável. Existe um conjunto de regras de jogos disponíveis numa determinada sociedade, que se somam às regras que um indivíduo cria. Essa combinação vai compor uma cultura lúdica própria. Mesmo as brincadeiras tradicionais, que se encontram em vários contextos culturais, ganham contornos específicos. A amarelinha, por exemplo, pode ser jogada a partir de vários traçados e com regras que variam de região para região. Até mesmo o nome pode ser outro. Em Portugal, este jogo é conhecido como Jogo do Aeroplano ou Jogo da Macaca. A cultura lúdica é um conjunto vivo, diversificado conforme os indivíduos e os grupos. As regras dessa cultura lúdica são bem particulares, pois são vagas e com estruturas gerais e imprecisas. Brougère (2002) prefere chamá-las de esquemas de brincadeiras, que são uma combinação complexa da observação da realidade social, hábitos de jogo e suportes materiais disponíveis.


A cultura na qual a criança está inserida e a cultura lúdica que ela possui provocam uma variedade enorme de combinações possíveis. Essa cultura lúdica se produz e se propaga de várias maneiras. A criança, quando brinca, vai acumulando, desde bebê, as experiências que vão constituindo sua cultura lúdica. Essa experiência vai se enriquecendo na medida em que ela participa de brincadeiras com outros parceiros (adultos e crianças), pela observação de outras crianças e pela manipulação cada vez maior de objetos de jogo. A brincadeira é um processo de relações da criança com o brinquedo, com outras crianças e com os adultos,




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portanto, um processo de cultura. O uso que a criança faz do brinquedo, a maneira como brinca e suas preferências indicam uma produção de sentidos e de ações. Na brincadeira, a criança se apropria dos conteúdos disponíveis, tornando-os seus, através de uma construção específica. As brincadeiras variam segundo as idades, o gênero e os níveis de interação lúdica. As brincadeiras coletivas expressam apropriações de conteúdos diferentes dos que estão presentes numa situação individual.


Toda interação supõe uma interpretação. A criança vai agir em função da significação que vai dar aos objetos dessa interação, adaptando-se à reação dos outros elementos da interação, para reagir também e produzir assim novas significações que vão ser interpretadas pelos outros, como numa espiral.


A experiência lúdica se alimenta continuamente de elementos que vêm da cultura geral. Essa influência se dá de várias formas e começa com o ambiente e as condições materiais. O que dizem e o que fazem os adultos a respeito dessa atividade, bem como o espaço, o tempo e os materiais colocados à disposição das crianças (na cidade, nas moradias e nas escolas), são aspectos que vão ter papel fundamental para o desenvolvimento da experiência lúdica.

A forma de comunicação própria da brincadeira pressupõe um aprendizado com conseqüências sobre outros aprendizados, pois permite abrir possibilidades de distinção entre diferentes tipos de comunicação: reais, realistas, fantasiosas. A criança, quando brinca, entra num mundo de comunicações complexas que vão ser utilizadas no contexto escolar, nas simulações educativas, nos exercícios, etc. Nesse sentido, é extremamente importante distinguir os diferentes tipos de atividade que podem e devem ter seu lugar garantido no contexto escolar.


Existe uma certa confusão por parte de alguns professores, que chamam de brincadeira uma série de atividades que podem ser lúdicas, mas que não são propostas nem desenvolvidas pelas próprias crianças. Quando a especificidade da brincadeira é mantida, os elementos que predominam são incerteza, ausência de conseqüência e sucessão de decisões tomadas por aqueles que brincam.




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Durante uma pesquisa de campo (Porto, 1996), foi possível observar e analisar uma situação de brincadeira que durou cerca de 1 hora e que envolveu três crianças de idades variadas e dois adultos. A brincadeira começou como uma luta entre o Bem e o Mal. À primeira vista, se poderia supor que desembocaria em atos violentos, no entanto, como na brincadeira não se sabe com antecedência o que vai ocorrer, vejamos o que aconteceu:


Vamos começar pelo diálogo entre uma estagiária e Pedro, de três anos. Pedro mostrou uma raquete e disse que era um escudo.

Estagiária: – Isso não é um escudo, é aquele negócio de jogar bola.

Pedro: – Ah, finge que é um escudo.

Naquele momento, Pedro tentava estabelecer o espaço e o tempo da brincadeira, recorrendo à metacomunicação para estabelecer que os objetos e as atividades teriam, a partir de então, outro valor. No início, a estagiária recusou o código proposto por Pedro. Sua atitude demonstrava que, ou não sabia brincar, ou não concordava com Pedro, ou simplesmente evitava aquele tipo de brincadeira. Como Pedro continuou demonstrando interesse em brincar, a estagiária cedeu ao seu apelo.

Estagiária: – Eu não sei lutar não, me ensina?

Pedro: – Essa espada é de ouro.  Essa daí, é do mal.

Para Pedro, a definição entre bem e mal era imprescindível. A arma que escolheu foi a espada que podia ser usada para o bem, se fosse de ouro, ou para o mal, se fosse de outra cor. Logo depois, percebendo, de certa forma, que a estagiária não saberia brincar como ele gostaria, Pedro pareceu desistir. Aproximou-se de Maria (coordenadora) e pediu que consertasse um volante de carro de verdade, que era usado como brinquedo. Maria o ajudou. Pedro simulava dirigir com o volante e informou a Maria que a levava de carona. Enquanto isso, outras crianças chamavam a atenção da coordenadora para outras brincadeiras, e Pedro foi dando continuidade à sua.








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Pedro: – Eu puxei a corda, para você ir lá na caverna. Eu vou sozinho. Já estou indo! Ih, o avião está caindo! Está afundando! A casa está dentro do avião, mas você não vai sair quando chegar na caverna.

Maria: – Vamos consertar o avião e Vítor também vai ajudar.

Vítor: – Vou consertar.

Maria: – O Vítor está consertando também!

Vítor: – Eu e o Pedro, a gente fica no avião.

Pedro: – Cuidado que agora eu vou dar um vôo fortão! O avião está caindo de novo!

Vítor: – Eu e o Pedro ficamos a toda hora no avião.

Pedro: – É, a gente tem que consertar.

Vítor: – É, se tiver algum problema, a gente conserta.

Maria e Vítor tornaram-se parceiros de Pedro na brincadeira que, daquele momento em diante, se desenvolveu através de uma sucessão de decisões.

Pedro: – Maria, a gente já consertou.

Vítor: – Agora, o avião vai voar muito forte!

Pedro: – Então, o Vítor vai pilotar agora.

Vítor: – Serra, prego, parafuso!

Maria: – Caixa de ferramentas?

Vítor: – Eu tenho uma dessas na minha casa.  Meu pai me deu.


A caixa de ferramentas remeteu Vítor ao seu contexto imediato, a uma situação de sua vida privada. Ele se apropriou dos conteúdos disponíveis, tornando-os seus, através de uma construção específica. Expressou seu universo através daquele brinquedo. Quase houve uma




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interrupção da brincadeira, mas a decisão da maioria a manteve. Vítor compreendeu o sinal de Pedro para que desse continuidade.

Pedro: – Vítor, você não pode deixar o volante do avião!

Vítor: – Você que tem que dirigir.


Pedro dirigiu-se à estagiária que observava e pediu que pilotasse. Tentou incluí-la mais uma vez. A maneira de transmitir a mensagem “isto é uma brincadeira”, como vimos, é variada. Pode ser explícita ou implícita, verbal ou não-verbal. Ao se voltar para a estagiária, Pedro usou a forma explícita e verbal. Pedro também se dirigiu a Vítor para deixar clara a nova condição.


Pedro: – Agora, estou brincando com ela.



Aparentemente, Vítor recusou a decisão de Pedro e a estagiária ficou fora da brincadeira novamente.

Vítor: – O avião está caindo! Vou pegar um submarino!

Maria: – Olha, lá tem mais ferramentas. Vê se dá para consertar.


Pedro retornou rapidamente para a brincadeira, aceitando a decisão de Vítor.


Pedro: - Vítor, vamos consertar o avião!

Vítor: – Não vou consertar não.  O pior é que o tubarão pode te engolir!

Pedro: – Vai dirigir para o Mundo dos Fantasmas?

Vítor: – Não, vou encontrar a Vaca do Mar, a Vaca Marinha.











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Pedro: – Já sei, vou fazer um cavalo-marinho. É muito longe. Todo o mundo pegando o binóculo para ver o cavalo-marinho. Eu que sou o capitão. Agora, todos desçam para pegar o tesouro.

Maria: – Pega o microfone!


Aos poucos, novos elementos foram entrando no jogo. Vítor colocou os patins que antes estavam com sua irmã, Sara, de seis anos.

Vítor: – Eu também sou Capitão.

Pedro: – Outro Capitão! Pega o seu binóculo.

Maria: – Encontrei um colar de pérolas!

Pedro: – Oba! Estamos ricos!


Pedro deu um binóculo para Vítor e se referiu a armas que, concretamente, não fazem parte de sua vida, mas às quais tem acesso pela literatura, televisão, vídeo ou cinema.

Pedro: – É para você ver o tesouro. Todos pegando seus canhões! Todos pegando suas bazucas! Todos pegando as espadas para cortar as Cobras-Marinhas!

Maria: – Onde está a cobra?

Pedro: – Lá fora do avião.


Sara, que estava até o momento fora da brincadeira, trouxe uma cobra de pano. Sara, com o simples gesto de estender o brinquedo, usou a forma implícita de metacomunicação.

Sara: – Olha a cobra!

Pedro: – Eu estou dirigindo para o Rio dos Fantasmas!

Maria: – Eu posso descer?





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Maria, de forma implícita, mas verbal, tentou abandonar a brincadeira, mas Pedro a impediu.

Pedro: – Não, porque você tem que conhecer. O Navio Fantasma está por aqui. Não está ouvindo?

Vítor: – Estou, mas aqui também é o Navio Fantasma.


Mesmo que Pedro não tenha se dirigido a Vítor, este deixou bem claro que não estava disposto a interrupções. Depois de sua pequena participação, Sara sentou-se para ler um livro. Alheias a toda a movimentação provocada pela encenação dessa aventura, outras crianças se divertiam. Julia jogava com a estagiária e Carolina brincava na mesa. Logo depois, Sara deixou a leitura de lado e voltou a andar de patins.


Enquanto isso… A aventura continuava. Maria olhava por um binóculo.


Maria: – Estou vendo você.

Pedro: – Você tem que ver o tesouro.

Maria: – Estou vendo um menino chegando aqui perto.

Maria se referia a Vítor.

Vítor: – Vou pilotar o avião.


Vítor se afastou com o binóculo e a espada.



Vítor: – Achei um monte!



Vítor encontrou uma caixa e a chamou de monte.


Maria: – Vamos ver o que tem nesse baú?









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Pedro: – O avião vai sair com um monte de tesouros que a gente roubou do navio. A gente está rico! Oba! Estamos ricos!

Todos, Maria, Pedro e Vítor, observaram o que havia dentro do baú. Tiraram um a um os objetos e mostraram uns aos outros, pulseiras, arcos, anéis, óculos, etc.…

Pedro: – Eu achei o Anel dos Poderes!

Vítor: – Me dá?

Pedro apontou um colar que estava nas mãos de Vítor.

Pedro: – Esse aí é o Colar dos Desejos! O Anel dos Poderes! Outro Anel dos Poderes!


Vítor insistiu em pedir o anel.


Vítor: – Me dá esse?

Pedro: – O meu é mais brilhante.

Vítor: – Vou pegar os meus óculos de raio-fogo!


Enquanto os dois meninos se distraíam nessa disputa, Sara, de patins, se aproximou, se apoderou do baú e já ia fugindo, quando…

Maria: – Olha, defende! Ela quer roubar o Colar dos Desejos!

Sara: – Eu estou pegando tudo!

Sara tentou fugir, mas Vítor correu e a segurou.

Sara: – Eu roubei, eu roubei!

Pedro: – Ela está frita!

Maria: – Prende ela, você que está com o poder.






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Pedro: – Anel dos Poderes, congelar!

Maria: – Vamos voltar para o navio. Todos a bordo! Guardem o tesouro. Vamos partir antes que ela volte!

Sara “descongelou” e colocou tudo o que pegou no chão.

Sara: – Ah, voltei!

Maria: – Vamos prender ela! Ela está roubando tudo!

Maria agarrou Sara por trás e disse: –Você pode fugir, se entregar tudo! Tira tudo. Pode fugir agora.

Sara devolveu algumas coisas, mas se apoderou de outras e fugiu novamente.

Pedro: – Ela é do Bem!

Vítor: – Não, ela é do Mal!


A brincadeira, nada violenta, se desdobrou, formando uma narrativa, com começo, meio e fim, tendo como eixo o conflito entre o bem e o mal. Segundo o psicólogo Bruno Bettelheim (1988, p. 271), os jogos de Mocinhos versus Bandidos permitem à criança visualizar sua fantasia e lhe dar “corpo”, ao ser policial ou ladrão.


“Representar esses papéis permite-lhe chegar perto da realidade dessas personagens e de como elas se ‘sentem’, o que a leitura ou a televisão não podem propiciar. Um papel passivo e receptivo não é substituto para encontros ativos com a realidade da experiência.”

De acordo com essa interpretação, o domínio da televisão, que tanto preocupa pais e professores, ficaria matizado através das brincadeiras.


Brougère (1995, p.60), por sua vez, afirma que “do ponto de vista da educação da criança pequena, a brincadeira ligada à televisão pode permitir uma abordagem distanciada, até mesmo crítica, de determinados conteúdos televisivos. Encontramos, aqui, a possibilidade





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de conceber uma educação da criança telespectadora através da brincadeira. Na verdade, a brincadeira permite a descarga das emoções durante a recepção televisiva, a tomada de distanciamento com relação às situações e aos personagens, a invenção e a criação em torno das imagens recebidas”.


A aventura que se desenrolou deixa claro que é possível que os adultos façam intervenções não destrutivas na brincadeira e atuem como observadores e mediadores privilegiados, podendo fornecer elementos que vão enriquecer ainda mais o jogo.


A intervenção se dá através da seleção dos brinquedos e demais materiais colocados à disposição das crianças, de sua arrumação num determinado espaço e da participação na brincadeira, quando é convidado. Todas essas ações são delicadas e complexas e exigem que os adultos, em especial os professores, conheçam muito bem a especificidade da brincadeira, depois de a terem observado muito. Conhecer bem cada criança, sua cultura, como brinca, de que maneira, do que e de que jeito é a chave para uma boa atuação nesse terreno.

Os professores não devem hesitar em organizar e propor atividades dirigidas e construídas em função de objetivos pedagógicos, mas que tenham uma lógica completamente diferente da brincadeira. A relação entre a brincadeira e as atividades dirigidas é também interessante, visto que as duas formas podem se enriquecer mutuamente.


As atividades dirigidas podem sugerir idéias, oferecer oportunidades de as crianças ampliarem sua visão de mundo. As crianças podem, depois, transferir suas descobertas para suas brincadeiras. Reciprocamente, o professor pode observar o conteúdo cultural da brincadeira para desenvolver outras atividades que, desse modo, vão partir dos interesses demonstrados pelas próprias crianças. Quando a brincadeira é valorizada em todas as fases da vida, as crianças aprendem com os adultos e estes aprendem com as crianças, como nos versos dessa canção.

Brincando se aprende a viver

Michael Sullivan e Dudu Falcão







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