Quero
crescer? quero ler e escrever? reflexões psicopedagógicas
1. Muriel
Haupenthal
2. Andrea
Theise março/2007
RESUMO:
O presente artigo possui
como foco um estudo de caso caracterizado por dificuldades de aprendizagem
referentes à linguagem, mais especificamente a leitura e a escrita. Sendo o
estudo de caso, uma prática atribuída a Psicopedagogia Clínica, apresentaremos
uma breve descrição sobre a mesma. Pontuaremos também, questões pertinentes: a
história vital do sujeito pesquisado, a realização da avaliação da
lecto-escrita e a aplicação de provas projetivas. De posse dessas informações,
estabelecemos um diagnóstico baseado na pesquisa e investigação, fazendo uso
das hipóteses que nos conduziram à identificação da(s) causa(s) da(s)
dificuldade(s) de aprendizagem apresentadas pelo sujeito pesquisado. A partir
disso, construímos uma proposta de intervenção psicopedagógica que resultou, na
apresentação, de uma devolução para a família sobre o caso aqui apresentado.
Pois, a história do sujeito estará sempre relacionada com a sua família, mais
especificamente, com as representações e significações presentes nas suas
interações familiares.
Palavras-Chave:
Psicopedagogia; desenvolvimento; linguagem.
O psicopedagogo deve
contemplar o sujeito em sua totalidade, para compreender o processo de
aprendizagem, pois a aprendizagem se dá através da construção do conhecimento e
também da construção de si mesmo, como sujeito criativo e pensante, autor e
autônomo. Então, para que o sujeito aprenda, é imprescindível a interseção de
quatro níveis: o organismo (biológico, herdado, inato), a inteligência
(objetividade, generalidades, nos torna parecidos), o corpo (construído,
subjetivado) e o desejo (subjetivo, nos torna únicos, singulares).
Bossa (2000, p. 21, 22)
nos fala que:
O trabalho clínico se dá
na relação entre um sujeito com a sua história pessoal e sua modalidade de
aprendizagem, buscando compreender a mensagem de outro sujeito, implícita no
não-aprender. Nesse processo, onde investigador e objeto-sujeito de estudo
interagem constantemente, a própria alteração torna-se alvo de estudo da
Psicopedagogia. Isto significa que, nesta modalidade de trabalho, deve o
profissional compreender o que o sujeito aprende, como aprende e por que, além
de perceber a dimensão da relação psicopedagogo e sujeito de forma a favorecer
a aprendizagem.
É indispensável que o psicopedagogo possa avaliar e
auxiliar o sujeito em todas essas dimensões, essencialmente a do desejo, para
que ele se torne capaz de aprender e realizar-se com isso, se tornando uma
pessoa feliz. Para isso, Bossa (2000, p. 23) afirma que:
No exercício clínico, o psicopedagogo
deve reconhecer a sua própria subjetividade na relação, pois trata-se de um
sujeito estudando outros sujeitos, em que um procura conhecer no outro aquilo
que o impede de aprender, implica uma temática muito complexa. Ao psicopedagogo
cabe saber como se constitui o sujeito, como este se transforma em suas
diversas etapas de vida, quais os recursos de conhecimento de que ele dispõe e
a forma pela qual produz conhecimento e aprende.
Uma ferramenta indispensável para a prática da
Psicopedagogia Clínica, é o estudo de caso, pois o mesmo possibilita a obtenção
de dados sobre o paciente que está em processo terapêutico. Durante a
realização de um estudo de caso, o psicopedagogo busca diversas informações
referentes ao sujeito que se encontra em tratamento, pois estes dados revelam a
construção subjetiva do sujeito e a forma como ele se relaciona com o
conhecimento, com o aprender. Desta forma, para Escott (2004, p.190) “o estudo
de caso é um tipo de pesquisa qualitativa que tem como objeto de estudos uma
unidade que se analisa em profundidade”.
Sendo assim, o estudo de um caso, é a investigação que
busca construir hipóteses sobre um sujeito em especial, buscando sempre
valorizar a sua história, considerando seus avanços, incentivando-o na
superação das suas dificuldades e principalmente, tentando resgatar nele o
prazer de aprender.
Este estudo de caso objetiva a compreensão das causas
que geram dificuldades de aprendizagem, especificamente relacionadas à
lecto-escrita.
A criança pesquisada, que será chamada de R., tem 9
anos, é aluna da 4ª série do Ensino Fundamental de uma escola pública, R. mora
com a mãe, o pai e o irmão. Durante a entrevista sobre a história vital, que
para Weiss (2000, p.61) é:
Um dos pontos cruciais de um bom diagnóstico. É ela
que possibilita a integração das dimensões de passado, presente e futuro do
paciente. (...) A visão familiar da história de vida do paciente traz em seu
bojo seus preconceitos, normas, expectativas, a circulação dos afetos e do
conhecimento.
A mãe de R. revelou ter descoberto que estava grávida
dele, somente quando já estava sofrendo um princípio de aborto. Portanto, R.
não foi um filho desejado, a mãe afirma que a gravidez
“aconteceu” e que quando ela descobriu omitiu este
fato do pai da criança, pois estavam separados, contudo, o pai acabou sabendo
da notícia por terceiros.
Ao saber da gravidez, a mãe afirma que o pai de R.
aceitou tranqüilamente e apoiou-a. O restante do período
gestacional ela relata ter sido tranqüilo. O parto foi normal e sem nenhuma
complicação segundo a mãe. Quando R. nasceu, ela, o pai de R, e seu primeiro
filho, foram morar juntos, e em seguida R. começou a apresentar problemas de
saúde. Aos 9 meses R. foi operado para a remoção de uma hérnia, no entanto
durante o período de espera para a realização da cirurgia R. tinha uma saúde
muito debilitada, e necessitava de cuidados especiais. A cirurgia correu bem,
só que a mãe revela ter se traumatizado com este problema de saúde do filho,
ela afirma ter se tornado “neurótica” e diz que passou a superproteger o filho
desde aquela época.
R.
tem um irmão de 13 anos, fruto de uma relação anterior da sua mãe. Contudo, só
aos 9 anos R. ficou sabendo que o seu irmão mais velho não era filho do seu
pai. Essa revelação aconteceu porque R. perguntou por que o irmão não chamava
seu pai de pai, então sua mãe lhe disse que era porque ele não é pai do irmão.
Em trechos da entrevista, a mãe de R. fala que ele tem medo do escuro, medo de
temporal, medo de ficar doente, etc. ela ainda comenta que foi ela que
“colocou” esses medos nele. A relação de R. com esse irmão é repleta de brigas,
pois a mãe diz que eles possuem comportamentos opostos, R. é muito ativo,
falante, adora brincar, já o irmão é calmo, tímido, quieto.
R.
mamou até os 3 anos de idade, chupou bico só durante os primeiros meses, tomou
mamadeira até os 7 anos, falou e caminhou com 1 ano de idade, a mãe afirma que
ele só não caminhou antes, por causa do seu problema de saúde. Sobre o controle
esfincteriano a mãe relata que R. tinha “nojo” das fraldas sujas e por isso
parou cedo, por volta dos 2 anos. Aos 9 anos R. ainda dorme com mãe, mora a duas
quadras da escola e seus pais o levam e buscam, e quando ele vai com a mãe,
eles vão de mãos dadas até a porta da sala de aula.
A
característica que a mãe mais ressalta no seu filho é a facilidade de fazer
amizades e se comunicar, no entanto, ela comenta que ele não tolera ser “feito
de bobo”. Para a mãe, a importância da educação e da escola na vida do seu
filho é possibilitar que ele tenha um emprego melhor do que ela e seu marido.
Para viver “melhor”.
R.
é um menino de estatura baixa, franzino, e isso incomoda muito o seu pai que
acha que o filho “tem problema” porque “não cresce”, a mãe diz que já levou no
médico e que isso é normal. R. brinca na escola, preferencialmente com crianças
menores e na 4ª série, sente-se deslocado,
chegando a pedir até para mudar de escola. A mãe
diz que R. troca muitas letras quando escreve e é desatento, inclusive revela
que R. também trocava letras na fala até aproximadamente 7 / 8 anos.
Um
dos principais momentos da entrevista foi quando a mãe de R. falou que “tem
medo que ele cresça” e afirmou ter consciência de que estabeleceu uma “relação
de dependência com ele”. Outro ponto importante do relato da mãe é quando ela
desabafa “se eu tivesse dinheiro, ia fazer um tratamento, porque depois que ele
ficou doente eu mudei, eu não era assim”.
No
momento de encontro com R., objetivando avaliar o seu desenvolvimento na
leitura e na escrita, apresentamos para ele cinco livros de historinhas
diferentes, para que ele escolhesse o que mais despertava o seu interesse. R.
optou pelo livro intitulado “A festa encrencada”, de Sônia Junqueira. Pedimos
para que ele contasse a história para nós, e ele prontamente iniciou a leitura
do livro. Pois, segundo Weiss (2000, p. 96, 97):
Não
é desejável ler pedaços de um texto e sim o texto completo. Não se pode
esfacelar um texto, perdendo, assim, o seu significado, fazendo-se apenas uma
avaliação mecânica. É preciso resgatar, desde o diagnóstico, o hábito de ler,
criando-se a idéia de atividade prazerosa.
R.
demonstra ler com muita facilidade as palavras que fazem parte do seu
cotidiano, do seu vocabulário. Contudo, apresenta certa dificuldade para
identificar palavras que ele desconhece, parando muitas vezes de ler e pedindo
nossa aprovação, nos olhando e perguntando: “está certo?”.
Aconteceram
alguns fatos que merecem destaque, durante a leitura da historinha. Um deles
refere-se ao fato de R. estar lendo uma página e já ir folheando a próxima
página, demonstrando curiosidade e uma ansiedade muito grande em concluir a
leitura. Outro detalhe diz respeito à leitura da palavra “gruta”, R. não
conseguiu ler essa palavra, e fez algumas hipóteses. Porém, mais adiante a
palavra aparece novamente na história, e R. lê com muita facilidade a mesma
palavra, que ele antes parecia não reconhecer. Também é importante pontuar a
dificuldade que R. possui de pronunciar a letra “r” , quando essa se encontra
no meio das palavras, por exemplo, a palavra “dragão” ele lia “dagão”. A última
consideração, que nos despertou a atenção, foi o fato de em dado momento da
história, R. trocar a palavra “enorme”, por um sinônimo, “imenso”, com muita
rapidez e destreza.
Após
a R. acabar a leitura do livro, foi feita uma releitura da história para ele e,
posteriormente, foi solicitado que ele escrevesse o que ele havia compreendido
sobre aquela história. Conforme Weiss (2000, p.97) “ao final da leitura
verifica-se se ele aprendeu o sentido global do texto, se é capaz de
sintetizá-lo”. Ele escreveu um resumo, onde
privilegiou o início e o final da história. Na escrita, verifica-se a troca
ortográfica da letra “m”, pela letra “n” e vice-versa, trocas de tempos verbais
e outros erros ortográficos, principalmente dúvidas quanto ao uso das letras
“s”, “c” ou “ss”. No entanto, o texto apresenta estruturação lógica e
organização de idéias condizentes com o esperado para um aluno de 4ª série.
Após ler e escrever a história, foi solicitado a
R. que ele fizesse um desenho da sua família. Ele demonstrou bastante
satisfação ao desenhar. R. organizou o desenho da seguinte forma: ele, com
menor estatura, ao lado do irmão, um pouco mais alto, a mãe, mais alta que ele
e que o irmão, e o pai, o integrante mais alto da família. R. desenhou sua
família dentro de uma casa, que ele referiu ser a casa que ele morava antes. No
desenho da casa, R. fez divisões e desenhou um quarto para os seus pais, e um
quarto para ele e para o seu irmão.
As figuras humanas desenhas por R. revelam que o
mesmo, possui uma boa construção de noção de corpo. Na sua projeção, também
ficam bem claras as diferenças de gênero, sendo que a mãe está usando um
vestido e tem cabelos compridos e R., seu irmão e seu pai, vestem camisas e
calças e têm cabelos curtos. Todas as pessoas desenhadas encontram-se de braços
abertos e muito próximas umas das outras, as feições dos rostos são muito
parecidas.
R. fez uso da borracha ao desenhar seu rosto, o
rosto da mãe e o rosto do pai, os braços da mãe e do pai também foram refeitos,
assim como seus pés, os pés do irmão e da mãe. Observa-se que, R. desenhou um
rosto que foi apagado. Não ficando claro, a quem este rosto pertenceria. Além
disso, ele desenhou seu irmão tão próximo de sua mãe, que os desenhos
praticamente se sobrepõem.
Após a realização da entrevista com a mãe
(história vital), do momento de avaliação da leitura e da escrita e da
aplicação da prova projetiva desenho da família, estas informações serviram
para delimitarmos nossas hipóteses e construirmos o diagnóstico. Sempre
partindo da idéia de que:
O
sujeito precisa ser sempre compreendido em sua totalidade. Os testes não podem
ser usados dentro dos limites propostos nos seus objetivos, mas, sim,
analisados como dados que permitem diferentes perspectivas na compreensão
integrada do nosso paciente. (WEISS, 2000, p.122).
O
processo diagnóstico norteia o fazer psicopedagógico, pois é a base de todo
trabalho. Para Weiss (2000, p.32) “o objetivo básico do diagnóstico
psicopedagógico é identificar os desvios e os obstáculos básicos no Modelo de
Aprendizagem do sujeito que o impedem de crescer na
aprendizagem”. Sendo a aprendizagem um processo,
que só acontece através da interação do sujeito com o objeto e com o Outro.
Para Ferreiro & Teberoski (1985, p.26):
O
sujeito que conhecemos através da teoria de Piaget é um sujeito que procura
ativamente compreender o mundo que o rodeia, e trata de resolver as
interrogações que este mundo provoca. Não é um sujeito que espera que alguém
que possui um conhecimento o transmita a ele, por um ato de benevolência. É um sujeito
que aprende basicamente através de suas próprias ações sobre os objetos do
mundo, e que constrói suas próprias categorias de pensamento ao mesmo tempo que
organiza seu mundo.
Cabe ao psicopedagogo ater-se profundamente a fala
dos pais, para perceber o dito e o não-dito, tentando traçar uma perspectiva
que revele a história daquele sujeito, que está apresentando o sintoma. Pois, é
o olhar psicopedagógico para a subjetividade, que possibilita a percepção do
significado do aprender para cada pessoa (significado esse atribuído
fundamentalmente pela família), pois considera as questões intelectuais,
cognitivas, os aspectos simbólicos e a vontade abarcada na construção da
aprendizagem.
Durante
a pesquisa para a elaboração de um diagnóstico, que permita compreender, as
dificuldades de aprendizagem mencionadas pela família e pela escola a respeito
do desenvolvimento da lecto-escrita do sujeito R., percebe-se que a dificuldade
de aprendizagem de R. está muito mais relacionada ao seu desejo de não mostrar
o que sabe, para não perder o papel de bebê que a mãe designou a ele. Há um
contrato de sobrevivência entre R. e sua mãe, o fato dele não querer crescer,
traz de certa forma vantagens para ambos. Para Paín (1985, p.37):
O
crescimento da criança, sua passagem à adultez, transforma continuamente sua
posição em relação ao pai e à mãe, produzindo desequilíbrios (...). As
perturbações que o grupo não suporta, em função do seu particular contrato de
sobrevivência.
A
aprendizagem e o conhecimento estão diretamente vinculados às questões do
crescimento. Aprender implica crescer, um crescer que se estabelece a partir do
desejo do Outro, que atribui significados para as relações de
ensino-aprendizagem, que possibilita as interações entre o sujeito e o objeto.
O
não-aprender de R. na estrutura familiar que ele se encontra, significa manter
o lugar que ele ocupa de bebê da casa, que, caso venha a aprender e a crescer
estará impondo uma reestruturação na
organização familiar vigente. Conforme, Andrade (2002,
p.17) “apenas o desejo coloca em funcionamento o aparelho mental. Desejo de
conhecer instala-se, então, a partir da mãe. Esse movimento de desacomodar
implica muitas vezes mexer em questões difíceis de suportar”. Fernández (1991,
p.100) diz que atribuir a uma pessoa um lugar dentro de um grupo familiar, a
induz a desempenhar este papel.
R.
representa um importante papel dentro da sua família, pois, foi ele quem uniu
seus pais. Já que, durante a entrevista a mãe disse que ela e o pai de R.
estavam separados, mas assim que souberam que havia “acontecido” a gravidez
resolveram morar juntos. Nota-se, por diversas vezes na fala da mãe, que foi o
nascimento de R. que motivou e mantém a sua união. Portanto, o fato dele não
poder crescer, pode representar uma situação positiva: seus pais permanecem
juntos.
Em
dado momento do processo diagnóstico, a mãe verbaliza seu sentimento de
angústia em relação ao crescimento do filho dizendo que “tem medo que ele
cresça”. Conforme Ribeiro (2005, p.60) “para que uma criança aprenda, é
necessário que ela o deseje. Entretanto, para que esse desejo se articule é
imprescindível que alguém demande isso dela”. Desta forma, R. está
sintomatizando a falta de desejo e de demanda endereçados a ele. Segundo
Volnovich apud Ribeiro in Wolffenbüttel (2005, p. 62):
O
sintoma está no lugar de um fantasma, ou seja, o sintoma é a metáfora do
sentido do fantasma. Evidentemente esse fantasma é o fantasma da criança. Mas,
por sua vez, o sintoma é, (...), determinado pela estrutura desejante (‘o
sintoma é a palavra da mãe’, diz Mannoni).
O
desejo da mãe, de que R. continue sendo seu bebê, é explicitado em diversos
momentos da entrevista realizada para aquisição de dados acerca da história
vital, ela relata determinados fatos, fundamentais para o entendimento do
contrato de sobrevivência existente entre os dois. Dentre eles: R. ainda dorme
na cama com os pais; a mãe incentivou R. a parar de tomar mamadeira, mas depois
tentou fazer com que ele tomasse novamente; ela leva e busca R. na escola que é
bem próxima da sua casa; R. tem muitos medos (escuro, doença, temporal, etc.) e
muitos deles só aparecem na presença da mãe.
Além
disso, R. é “pequenininho” como diz mãe, bem menor em relação às outras
crianças da sua idade, mas ela justifica afirmando também ser “pequenininha” e
diz não se preocupar com isso, mas comenta que o pai de R. fica muito
preocupado com o “tamanho” do filho. Para Rangel (2005, p. 102):
Nessa
concepção de corpo integralizado, entende-se que cada corpo expressa uma
história individual, particular, construída e contada através de gestos,
expressões, movimentos, perpassados por sentimentos, emoções, valores, crenças,
advindos de aspectos sócio-culturais. É através dele que visitamos o mundo e o
percebemos de maneira muito próxima.
Sendo
assim, R. apenas corresponde à demanda que sua mãe lhe designa, em uma díade,
onde se estabelece o seguinte acordo: o crescimento do filho não reflete o
desejo da mãe, para tanto, ele não aprende, não cresce e não desaponta essa
mãe. Fica bom para todo mundo.
Com
base na construção da hipótese diagnóstica, que se refere ao fato da mãe
desejar que R. não cresça e este, ocupar esse “papel” de bebê, inclusive
fisicamente (organicamente). Pode-se, perceber que apesar de R. estar
alfabetizado, ele apresenta dificuldades de aprendizagem quanto ao fato de
expandir seus conhecimentos e conseqüentemente expandir-se como sujeito. Pois,
aprender e conhecer para R. pode representar entender seu papel na relação de
seus pais, desapontar a sua mãe, reconhecer o seu desejo em contrapartida ao
desejo da mãe. Esse revelar-se através do saber, pode significar sofrimento
para R., que por isso se nega a mostrar o que sabe.
Tendo
a hipótese diagnóstica estabelecida, elaboramos uma proposta de intervenção. Já
que, segundo Escott (2004, p.34):
Ao
psicopedagogo interessa levantar e investigar as dimensões cognitivas,
afetivas, corporais e até mesmo pedagógicas, para, a partir de uma leitura
dialética, intercruzando todos esses fatores, realizar a leitura global do
sujeito que apresenta dificuldades na aprendizagem, organizando, dessa forma,
competentemente, a intervenção psicopedagógica.
Através das informações obtidas, observou-se uma
dificuldade de aprendizagem sintoma, que tem por base a existência de um
contrato de sobrevivência entre R. e sua mãe. A questão norteadora para a
compreensão das dificuldades da lecto-escrita apresentadas por R., está
diretamente vinculada ao desejo que a mãe possui de que ele não cresça.
Portanto, R. tem todas as possibilidades de aprender, mas não pode mostrar o
que sabe para não romper com o contrato de sobrevivência existente na família.
A seguinte proposta tem por objetivo, favorecer a
R. a afirmação da sua independência, da qual encontra-se privado. Promovendo a
construção da sua autonomia e, conseqüentemente,
liberando a sua capacidade de ação.
Desvinculando-se desta relação de dependência que é mantida com a mãe. Pois,
para Fernández (2001, p.91):
A
autoria de pensamento é condição para a autonomia da pessoa e, por sua vez, a
autonomia favorece a autoria de pensar. À medida que alguém se torna autor,
poderá conseguir o mínimo de autonomia.
Com
base na análise dos dados, a intervenção pensada, refere-se diretamente a
propostas direcionadas ao grupo familiar. Uma vez que, o sintoma não está
apenas no sujeito R., mas na estrutura de toda a família.
Para isso,
sugerimos à família as seguintes ações:
Oportunizar
através do lúdico, que R. desempenhe papéis (jogo simbólico) condizentes com a
sua idade, e até, por vezes, papéis adultos. Favorecendo a aquisição da sua
independência;
Estabelecer
que R. tenha seu espaço determinado na sua casa, dormindo sozinho, cumprindo
tarefas, participando das decisões e conversas familiares. Para que, desta
maneira ele desenvolva responsabilidades, percebendo a sua importância e,
conseqüentemente o seu lugar;
Autorizá-lo
a realizar atividades que valorizem seu crescimento. Ex.: você pode ir e voltar
sozinho da escola, pois você já é “grande” o bastante; você pode “dormir”
sozinho, porque nada de mal lhe acontecerá; você pode acender o fogão, porque
você vai cuidar; etc. Conversar sobre os medos e as questões que lhe afligem;
Possibilitar
momentos de expressão da linguagem oral e escrita, contextualizados pelo desejo
de R., por exemplo, jogos de videogame, que, por serem momentos de prazer,
facilitariam que ele revelasse seus saberes.
Buscando,
despertar o que sabiamente escreveu Freire (1983, p. 30) que:
Quando
o homem compreende sua realidade, pode levantar hipóteses sobre o desafio dessa
realidade e procurar soluções. Assim, pode transformá-la e com seu trabalho
pode criar um mundo próprio: seu eu e suas circunstâncias. O homem enche de
cultura os espaços geográficos e históricos. Cultura é tudo o que é criado pelo
homem. Tanto uma poesia como uma frase de saudação. A cultura consiste em
recriar e não em repetir. O homem pode fazê-lo porque tem uma consciência capaz
de captar o mundo e transformá-lo.
Com base na entrevista e provas projetivas
realizadas, chegamos a conclusão de que há um contrato de sobrevivência entre
R. e sua mãe. Neste contrato R. deve manter-se no seu papel de bebezinho da
mãe, que admite não desejar que seu filho cresça, sendo esta, ao nosso ver, a
causa dos sintomas apresentados pela criança. Esta família também apresenta
segredos, começando pela omissão da mãe sobre a gravidez, sendo que o pai foi
informado por terceiros.
O
fato de R. ter descoberto apenas aos 9 anos que seu irmão não é filho de seu
pai também denota que o segredo é presente nesta família, pois esta informação
lhe foi omitida por muitos anos, o que pode criar em seu imaginário a fantasia
de que, já que o irmão não é filho deste pai, talvez ele também não o seja.
Em
seu desenho R. faz um rosto e apaga, ficando a marca no papel, nos revelando a
possibilidade de haver mais um segredo, que talvez ainda não tenha sido
revelado.
Mesmo
já estando alfabetizado, R. ainda apresenta dificuldades de lecto-escrita, onde
quando escreve se esquece de letras no meio das palavras, e quando lê omite
algumas letras, como o “r”. Em alguns momentos em seu caderno, que tivemos a
oportunidade de ver, ele escreve algumas palavras pela metade, não fazendo isto
no texto que produziu sobre a história que propomos.
Tendo
observado o desenho da família realizado por R., concluímos que ele apresenta o
desejo de se libertar do papel que lhe é imposto pela sua família, pois em seu
desenho faz um quarto para ele e o irmão separado do quarto dos pais, onde a
cama de seu irmão fica entre a sua cama e o quarto que desenhou para seus pais.
No mesmo desenho observamos que R. se coloca distante do pai, e põe seu irmão
entre ele e sua mãe. Isto contradiz a fala da mãe, que em dado momento da
entrevista nos informa que muitas vezes quando ela o leva a escola é ele quem
pega na sua mão para andar na rua. Acreditamos que para que ocorra o
crescimento, e conseqüentemente a aprendizagem de uma forma saudável, se faz
necessário libertar R. do engolfamento da mãe.
É
maravilhoso o olhar que a Psicopedagogia tem sobre o sujeito, vendo-o com uma
parte de um todo, compreendendo o papel que este ocupa no ambiente familiar,
podendo assim ajudar não só a este, mas também todo o grupo familiar, como é o
caso da família de R., onde a estrutura do casamento dos pais se apóia na vida
dele, foi a gestação dele que uniu este casal, os mantendo juntos até hoje. Uma
mudança no papel que R. ocupa significaria a desestruturação de todo este
movimento familiar, mexendo não só com ele, mas com as posições tomadas por
todos, principalmente a da mãe.
Pois,
conforme Nietzsche apud Alves (1994, p.92) “é preciso navegar. Deixando atrás
as terras e os portos dos nossos pais e avós, nossos navios têm de buscar a
terra dos nossos filhos e netos, ainda não vista, desconhecida”.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. A
alegria de ensinar. 6. ed. São Paulo, SP: Ars Poetica, 1994. 103 p.
BOSSA,
Nadia A. A Psicopedagogia no Brasil: contribuições a partir da prática. 2 ed.
Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. 131p.
______
Dificuldades de Aprendizagem: o que são? Como tratá-las? Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 2000. 119p.
CAPOVILLA,
Alessandra G. S. & ANDRADE, Márcia S. de. Linguagem escrita: aspectos
semânticos e fonológicos. São Paulo: Memnon, 2002. 67p.
ESCOTT,
Clarice M. Interfaces entre a Psicopedagogia Clínica e Institucional: um olhar
e uma escuta na ação preventiva das dificuldades de aprendizagem. Novo
Hamburgo: Feevale, 2004. 136p.
FERNANDEZ,
Alicia. A inteligência aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da
criança e sua família. 2ª reediçao Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. 261 p.
______Os
idiomas do aprendente. Análise das modalidades ensinantes com famílias, escolas
e meios de comunicação. Porto Alegre: Artmed, 2001. 223p.
FERREIRO,
Emilia; TEBEROSKY, Ana; LICHTENSTEIN, Diana Myriam. Psicogênese da língua
escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. 284 p.
FREIRE,
Paulo. Educação e Mudança. Tradução Moacir Gadotti e Lilian Lopes Martin. 6.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 79p.
JUNQUEIRA,
Sônia. A Festa encrencada. 4. ed. São Paulo: Ática, 1994. 20 p.
PAÍN, Sara. Diagnóstico e
tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre, RS: Artes Médicas,
1985. 86 p.
RANGEL, Denise Inazacki. A história pessoal
inscrita no “corpo” de cada um: uma aprendizagem constante. In: Psicopedagogia
teoria e prática em discussão. Novo Hamburgo: Feevale, 2005. 240 p.
RIBEIRO, Mariane S. M. Uma leitura psicanalítica
sobre as dificuldades de aprendizagem. In: Psicopedagogia teoria e prática em
discussão. Novo Hamburgo: Feevale, 2005. 240 p.
WEISS, Maria Lúcia Lemme. Psicopedagogia clínica:
uma visão diagnóstica dos problemas de aprendizagem escolar. 7. ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2000. 189 p.
WOLFFENBÜTTEL, Patrícia. Psicopedagogia teoria e
prática em discussão. Novo Hamburgo: Feevale, 2005. 240 p.
Fonte:http://www.abpp.com.br/publicacoes_artigo04.html