quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Ensino com a cara do campo
Com uma proposta pedagógica eficaz fez a escola rural se tornar referência em qualidade de ensino
CONTEÚDO E CONTEXTO Alunos da Hermínio Pagotto, em Araraquara, aprendem na sala de aula e nas plantações. Foto: Rogério Albuquerque
Pés de jaca, goiaba e maracujá estão por toda a parte ao redor da EMEF do Campo Professor Hermínio Pagotto, em Araraquara, a 270 quilômetros de São Paulo. Ela está no assentamento Bela Vista do Chibarro, região dividida em lotes que foram entregues em 1990 a 170 famílias pelo Instituto Nacional de Colonização de Reforma Agrária (Incra). As propriedades que surgiram são hoje mais do que uma fonte de renda para a comunidade: elas se tornaram laboratório e sala de aula para os filhos dos agricultores.

Tudo começou em 2001, quando as pessoas que ali moravam e trabalhavam se reuniram para resolver um problema: a escola era estadual e, para ser municipalizada e receber mais investimentos, os gestores precisavam apresentar um projeto à secretaria de Educação. Mudanças na forma de ensinar - até então baseada em livros didáticos e com conteúdos distantes da realidade local - já estavam nos planos da direção. Para atingir os objetivos, era necessário fazer a escola rural dar certo. E, no trabalho de aprofundar os conhecimentos e abrir as portas para a comunidade, nasceu um projeto vitorioso (leia mais sobre as ações que garantiram o sucesso da escola no quadro abaixo). "Precisávamos fazer com que os alunos percebessem o sentido do ensino e valorizassem o aprendizado", lembra a diretora, Adriana Maria Lopes Morales Caravieri. Os indicadores eram preocupantes: a evasão tinha atingido 15,3%, e a taxa de reprovação, 7,14%.
Pais, alunos, professores, funcionários, lideranças comunitárias, pesquisadores de universidades e representantes da secretaria de Educação da cidade, do Incra e do Instituto de Terras do Estado de São Paulo foram chamados para participar da discussão do projeto pedagógico, batizado de Programa Escola de Campo, foram chamados O que começou como uma solução para apenas uma escola acabou virando uma política pública no município de Araraquara, um modelo tão bem-sucedido que foi adotado pela vizinha Matão (leia mais no quadro da página abaixo).
Ações para uma escola rural dar certo

? Aproximação do ensino com a realidade das crianças.
? Valorização dos saberes do campo.
? Uso de espaços alternativos de ensino, como as plantações locais.
? Aprofundamento dos conhecimentos, relacionando-os com os produzidos fora do contexto rural.
? Abertura da escola para a participação ativa da comunidade.
? Contato com outras escolas rurais para a troca de experiências.
Saberes bem atrás de casa

COMUNIDADE PRESENTE  Pais e vizinhos são fontes de informação, com alunos demonstrando respeito pelo saber que vem do campo. Fotos: Rogério Albuquerque
Uma das primeiras decisões foi fazer das propriedades locais uma extensão da sala de aula, permitindo que os saberes circulassem entre a escola e a casa dos alunos. Muito do que as crianças aprendem é útil para quem trabalha com a terra. Stefany Aragão Oliveira, 9 anos, descobriu nas aulas de Ciências que o bichinho da goiaba vem dos ovos de uma espécie de mosca. A professora ensinou a fazer uma armadilha para os insetos, evintando assim que as frutas fossem atingidas. Nas árvores do pomar da família, a menina montou arapucas e eliminou o problema.

Para valorizar os saberes do campo e fortalecer a aproximação com a comunidade, os agricultores se tornaram uma fonte de informação. No estudo sobre as propriedades medicinais do maracujá, Adiel Augusto Gonçalves recebeu a turma do 4º ano durante uma manhã para conversar sobre o plantio. Primeiro, a garotada fez pesquisas em livros e depois foi investigar como o cultivo é feito pelos pais e vizinhos. "Eu também estou aprendendo ainda", afirma Adiel às crianças, ao trocar informações sobre as melhores formas de obter as sementes.

DA ESCOLA PARA A CASA  Aprendizagem faz sentido quando o que se aprende em sala de aula é levado para as propriedades da família
Outro princípio da Escola do Campo é aproveitar dados da realidade para ensinar os principais conteúdos curriculares. No início dos trabalhos com o 6º ano, ao estudar a origem dos números e os sistemas de numeração, o professor Irineu Marcelo Zocal propôs uma atividade de coleta de dados. As crianças pesquisaram nos lotes os tipos de lavoura que eram cultivados. Em sala, elas construíram gráficos de barras para fazer comparações. "Essa é uma forma de usar informações do contexto das crianças", explica. É também uma maneira de mostrar que o uso do contexto local não significa desprezar os conhecimentos produzidos fora do âmbito rural. "Eu trago o mundo para dentro da escola", completa Odete Botari, que leciona para o 3º ano. A turma dela estuda conteúdos relacionados à alimentação, fazendo pesquisas na horta da escola e nos arredores. Mas não fica nisso. "Quero que todos aprendam a fazer gráficos da distância entre os planetas", exemplifica.

Envolvimento comunitário

AMPLIAÇÃO DO SABER Laboratório completo auxilia os professores a aprofundar os conhecimentos científicos da turma
A Hermínio Pagotto usa vários mecanismos de interação com a comunidade. Os tradicionais, como o Conselho Escolar e o Grêmio Estudantil, têm participação ativa em todas as ações da escola. Há ainda reuniões e assembleias comunitárias. Luciana Carla Soares Moço é mãe de aluno e presidente do Conselho há três anos. "Nada acontece sem que todos fiquem sabendo. Participamos das decisões", comenta. A unidade está permanentemente aberta para familiares e vizinhos, que utilizam os espaços disponíveis para promover cursos de qualificação profissional, reunir lideranças rurais e até promover festas. Tudo está à disposição, da quadra ao laboratório, passando por biblioteca, hortas e cozinha experimental.

O projeto ganhou o Prêmio Gestão Pública e Cidadania da Fundação Getúlio Vargas em 2004. Em 2008, a Hermínio Pagotto participou de uma iniciativa do Instituto Embraer e passou por uma avaliação completa, com direito a um trabalho de identificação do que estava funcionando bem e do que poderia melhorar. Agricultores, pais, alunos, professores e funcionários, todos ajudaram a fazer o diagnóstico, que deu origem a projetos de melhoria tão interessantes que receberam o financiamento do instituto. Ainda este ano, as crianças ganharão uma sala de informática com internet, um playground e um viveiro de mudas. Os indicadores atestam o resultado do trabalho cooperativo: a evasão caiu para zero e a taxa de reprovação para 2,7% (um terço do que era em 2000). "É um incentivo à gestão participativa, com as pessoas contribuindo, em vez de só reclamar", explica Mariza Scalabrin, gerente de desenvolvimento social do Instituto Embraer.
Modelo de inovação

TROCA DE EXPERIÊNCIAS Escolas rurais de Matão adotaram o projeto de Araraquara e formaram uma rede de troca de informações
As transformações que fizeram da EMEF do Campo Professor Hermínio Pagotto uma referência em escola rural foram fruto de um processo de intenso diálogo com a comunidade e os parceiros envolvidos na realidade do campo. Tudo para que a escola se adequasse às exigências nacionais para o ensino rural e, ao mesmo tempo, refletisse as necessidades e os anseios dos moradores. Consolidadas as diretrizes educacionais, elas foram apresentadas no Fórum Municipal de Educação e aprovadas por unanimidade. "Todo o conhecimento que discutimos e acumulamos foi transformado no nosso projeto pedagógico, que deu origem à escola que vemos hoje, totalmente dedicada à aprendizagem dos alunos e ao desenvolvimento da região", conta a diretora, Adriana Caravieri. Em 2002, o programa se tornou uma referência para todas as escolas rurais de Araraquara. Na época, Alexandre Luiz Martins de Freitas era coordenador da Secretaria de Educação e acompanhou a implantação do projeto em outras duas unidades da rede. Atualmente, ele é o titular do cargo no município de Matão, a apenas 35 quilômetros de distância. E já levou a experiência para três escolas dessa cidade. A EMEF do Campo Professora Helena Borsetti tem 360 alunos e é uma delas. "No início, houve alguma resistência dos professores em relação aos novos métodos de ensino, mas eles logo viram que a contextualização do saber dá resultado", revela a diretora, Milena Ferreira. A escola monta os projetos aproveitando todos os espaços disponíveis, como a horta, que é usada para a medição de perímetro e área. A troca de informações entre as unidades rurais não para no eixo Matão-Araraquara. A Hermínio Pagotto já foi palco de seminários regionais de Educação do campo e os gestores participam de encontros municipais, regionais e nacionais para trocar experiências e criar uma rede de comunicação cada vez mais eficaz.


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