quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Temas Transversais
Gostaríamos que este pequeno texto sobre os temas transversais motivasse a reflexão e o debate de uma questão que se apresenta atual e ao mesmo tempo tão pouco explorada na escola. Certamente sua inclusão no currículo representa um desafio à cultura escolar.
Quando se fala sobre os temas transversais a primeira coisa que muitos professores pensam é que, apesar de serem "interessantes", não há espaço para a discussão deles no interior da escola, tendo em vista o extenso programa curricular que precisam cumprir. Se isso realmente acontece, então uma primeira pergunta se impõe: Por que a inclusão dos temas transversais no currículo?


Outros professores têm uma posição diferente, alegam que tais temas já são trabalhados nas diversas disciplinas e não vêm novidade nenhuma em sua inclusão formal no currículo. Se isso é verdade cabe aqui uma outra pergunta: Como esses temas têm sido incorporados no currículo contribuindo para a formação da cidadania?
Alguns professores acham que os conteúdos relativos a valores e atitudes, como os que trazem os temas transversais, devem ser discutidos pela família dos alunos, ficando seu papel limitado a ensinar os conteúdos específicos de sua disciplina. Aqui cabe uma terceira pergunta que questiona o próprio papel da escola: Se não é função social da escola trabalhar com valores e atitudes, como ela pretende formar cidadãos críticos e ativos na sociedade?
Existem, ainda, professores que incorporam esses temas na sua prática pedagógica tratando-os como se fossem mais uma disciplina curricular, esquecendo-se do seu caráter de transversalidade. Portanto, cabem aqui mais duas questões: Que mudanças a inclusão desses temas, no currículo, provocarão na prática pedagógica do professor ? O que eles representam para o processo de ensino-aprendizagem dos alunos, e por que não dos próprios professores?
A explanação que se segue não pretende de forma alguma esgotar a discussão sobre o assunto; como já foi dito acima espera-se, apenas, iniciar a reflexão a partir de algumas questões pertinentes para a compreensão da importância dos temas transversais para a formação dos nossos educandos.
Para entendermos a inclusão dos temas transversais seria interessante pensarmos como e por quê são estas e não outras as disciplinas que compõem o currículo atual. As disciplinas como: matemática, português, história, geografia, ciências, educação artística, etc. têm suas origens nos interesses intelectuais dos pensadores da Grécia clássica. As temáticas escolhidas por aqueles pensadores tinham em comum a não aproximação com o trabalho manual, com a vida cotidiana, e com a aplicação prática. As questões problemáticas da vida cotidiana eram destinadas às mulheres e aos escravos, ficando aos filósofos e demais cidadãos gregos as questões de plano intelectual, que vieram a dar origem à ciência ocidental. As questões dos filósofos gregos refletiam as preocupações de uma sociedade elitista e hierarquizada. Tais questões ainda se encontram presentes na estrutura curricular do ensino atual. Cabe aqui refletirmos se as temáticas de interesse dos pensadores helênicos dão conta da diversidade e complexidade de questões que nos impõe a vida cotidiana contemporânea. Se considerarmos que as idéias predominantes ao longo da história constituem o ensino de cada época e considerando que essas idéias avançam, então é natural que os avanços se reflitam no ensino. Portanto, não se trata de menosprezar a herança intelectual dos gregos, mas incorporar novas temáticas que dêm conta dos novos desafios impostos pelo nosso tempo. Dentro deste enfoque é que os temas transversais foram incluídos no currículo, abordando conteúdos mais vinculados ao cotidiano e propondo discussões referentes aos valores pertinentes à nossa época.
A inclusão dos temas transversais no currículo escolar vem questionar o próprio conceito tradicional de ciência, entendida como um conjunto acumulativo de verdades da natureza, pois esta ciência ao contrário do que imaginavam seus pensadores, também não consegue abarcar o total da realidade.
Podemos invocar aqui a ciência com consciência na qual, segundo Edgar Morin, o problema do controle ético e político da atividade científica é levantado frente aos poderes de manipulação e destruição oriundos das tecnociências atuais. Além do sentido ético e político a palavra consciência nos coloca um sentido intelectual que nos remete à qualidade chave da consciência, que é a sua aptidão auto-reflexiva. A ciência tem necessidade de pensar a complexidade do real, pensando na sua própria complexidade enquanto ciência e na complexidade dos problemas que ela mesma coloca à humanidade. Assim, a ciência deve fazer as pazes com a reflexão filosófica da mesma forma que a filosofia deve fazer as pazes com as ciências. Só deste modo é possível pensarmos a ciência com consciência da sua própria complexidade, de seus alcances e limites.
A questão agora é entendermos como os temas transversais devem ser incorporados ao currículo. Como os conteúdos de todos os temas transversais estão presentes nos diversos campos de conhecimento, muitas vezes o professor só incorpora na sua prática pedagógica a parte relacionada aos conteúdos específicos de sua disciplina, esquecendo-se de incorporar a discussão dos valores, atitudes e procedimentos que o tema suscita. Não basta que o aluno saiba o funcionamento de uma usina nuclear, ele precisa saber posicionar-se em relação a esta questão, que envolve a preservação ambiental, mas também interesses políticos, sociais e econômicos. Para que o aluno compreenda essa questão, o professor deverá problematizá-la através de discussões dos valores aí implícitos.
É importante deixar claro que os valores vivenciados na escola se derivam e estão intimamente relacionados com os ideais que cada grupo social elabora historicamente sobre si mesmo e sobre seus integrantes, visando garantir, através de sua reprodução, sua hegemonia, isto é, sua preponderância sobre os demais. Portanto, os valores que constituem a instituição escolar não são neutros, eles representam a sociedade contraditória na qual estão imersos. Desse modo, os fins, princípios e métodos definidos para a educação são expressão das disputas de interesses políticos dos diversos setores da sociedade.
A escola não é a única instituição que desenvolve o processo de socialização, entendido aqui como processo de aquisição das conquistas sociais por parte das novas gerações, mas especializa-se cada vez mais no exercício exclusivo de tal função. Através de seus conteúdos e formas de organização, a escola contribui para a interiorização das idéias, valores, conhecimentos, concepções e modos de conduta que a sociedade adulta requer.
O processo de socialização, porém, não é tão simples, linear ou mecânico. Vemos na escola a mesma tensão dialética que aparece em qualquer instituição social: de um lado temos tendências conservadoras reproduzindo o status quo para garantir sua própria sobrevivência, de outro, correntes renovadoras impulsionando mudanças como condição também de sobrevivência. A função educativa da escola portanto, segundo Sacristán e Gómes, seria utilizar o conhecimento como ferramenta de análise para compreender o sentido das influências de socialização que o indivíduo recebe na escola e na sociedade e os mecanismos que se utilizam para a sua interiorização pelas novas gerações. Desse modo, o conhecimento como ferramenta de análise estaria oferecendo à escola espaços de relativa autonomia para a construção da cidadania.
Possibilitar na sala de aula uma discussão sobre valores não é uma tarefa fácil, pois exige que o professor se coloque como parte integrante do grupo e também explicite que valores a escola pretende legitimar. Determinados valores devem fazer parte do projeto pedagógico da escola, sendo trabalhados por todo o corpo docente com os alunos. Mas como serão selecionados esses valores? Isso implica uma ampla discussão de toda comunidade escolar na qual certamente ficarão evidentes as inúmeras divergências existentes em relação aos valores, atitudes e procedimentos que deverão ser priorizados. Apesar de difícil, esta é uma tarefa que a escola não pode se negar a fazer, se pretende formar cidadãos críticos e participativos.
Os temas transversais são considerados "transversais" porque se inserem no currículo de forma a estar presentes em todos os campos do conhecimento. Assim, os temas, não sendo propriedade de nenhum campo específico, devem ser tratados por todas as disciplinas de forma integrada. Isto exige que o professor volte sua atenção para a questão da interdisciplinaridade. Trabalhar interdisciplinarmente, por sua vez, exige que o professor compartilhe com os colegas de profissão sua forma de trabalhar. Nem todos os professores se sentem à vontade para explicitar o seu trabalho pedagógico: talvez o receio da crítica ao seu trabalho os impeça de trabalhar de forma mais integrada. Talvez, ainda, os problemas sejam a concepção tradicional de ciência e a conseqüente ausência da cultura da interdisciplinaridade na escola, que levam o professor a uma prática pedagógica tradicional que compartimenta os saberes em diversas disciplinas.
O conhecimento e a ação na transversalidade trazem mudanças na prática pedagógica do professor e no processo ensino-aprendizagem. Os temas transversais propõem que os professores assumam a condição de intelectuais transformadores, educando os alunos para a criticidade e para a ação transformadora. Essa ação transformadora significa educar os alunos para lutarem contra a opressão e a favor da democracia no interior da própria escola e em esferas sociais mais amplas. Mas, para agirem como intelectuais transformadores, os professores precisam criar condições estruturais necessárias para escreverem, pesquisarem e trabalharem conjuntamente na elaboração de um currículo mais democrático. A elaboração deste currículo passa pelo acesso, organização e síntese de informações, pela valorização de algumas práticas em sala de aula, como a integração, colaboração, participação, criatividade e criticidade. Os professores, elegendo métodos e atividades que estimulem a formulação de questões, a reflexão, a discussão de opiniões contrárias, a resolução de problemas e conflitos, estarão estimulando o aluno " aprender a aprender". Os alunos serão, portanto, também responsáveis pelo seu aprendizado buscando e organizando informações, tirando conclusões e avaliando seu trabalho. Neste tipo de trabalho fica claro que o conhecimento não está pronto e acabado, mas que é social e historicamente construído. Portanto, a inclusão dos temas transversais no currículo possibilita que o professor tenha o controle de todo o processo do seu trabalho, desde a concepção até a execução.
Uma forma de organizar os conteúdos, que favorece a compreensão dos vários aspectos que compõem a realidade, articulando as contribuições de diversos campos de conhecimento, é através do desenvolvimento de projetos.
As atividades propostas neste caderno organizam os conteúdos em torno de Projetos que se relacionam entre si através da temática ambiental. Esta temática envolve questões relativas tanto à proteção e melhoria do meio ambiente, quanto à melhoria da qualidade de vida das comunidades. Nesta perspectiva, não só os aspectos físicos e biológicos são estudados mas, também, as diversas interações do homem com a natureza através das relações sociais, do trabalho, da ciência, da arte, da tecnologia, etc. O estudo de tais questões exige o conhecimento dos conteúdos das diversas disciplinas do currículo escolar, bem como, a discussão dos valores existentes na interação homem/natureza. A temática ambiental está, desta forma, impregnada no conjunto de disciplinas curriculares, ocupando assim uma posição de transversalidade.
Os Projetos apresentados neste caderno podem ser desenvolvidos de acordo com a organização didática escolhida pelo professor. Assim, a integração e a profundidade das atividades escolares podem se dar em diferentes níveis, de acordo com o domínio do tema ou da prioridade com que se apresenta para a escola. Mas, independente do nível com que os temas são trabalhados o importante é que eles introduzem na escola problemáticas ligadas ao cotidiano, possibilitando o desenvolvimento da criticidade, essencial para a formação da cidadania. Esta talvez seja a grande inovação dos temas transversais, pois eles vislumbram a possibilidade de elaboração de um currículo global da escola, integrando os conteúdos dos diferentes campos de conhecimento aos valores e atitudes que se quer desenvolver para uma sociedade mais justa e democrática.
Alguns princípios se destacam nesta nova dimensão pedagógica que se esboça com a inclusão dos temas transversais no currículo:
·         A escola fundamenta sua ação na realidade cotidiana, relacionando o conhecimento dos conteúdos disciplinares com o conhecimento que emana da realidade e da experiência dos alunos.
·         A escola adota atitude crítica e construtiva em favor do desenvolvimento dos valores éticos, visando um projeto de vida mais digno.
·         A escola torna-se síntese do desenvolvimento de capacidades intelectuais, afetivas, sociais, motoras e éticas dos alunos.
Para que esses princípios se concretizem são necessárias algumas intervenções:
·         acordo por parte da comunidade escolar dos valores básicos nos quais se vai educar;
·         clima de coerência no âmbito escolar em relação aos valores básicos em que se vai educar;
·         trabalhar igualmente, em todas as áreas, os conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais.
Gostaríamos de ressaltar que o trabalho com os temas transversais não se concretiza na escola da noite para o dia. Ele não pode ser imposto por decretos ou normas: é um processo que deve ser construído e incorporado por toda equipe escolar.
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